Numa entrevista exclusiva à Forbes África Lusófona, o presidente do conselho de administração da Administração Geral Tributária angolana aborda o processo de reforma fiscal em curso, a aposta na modernização tecnológica e nega que se esteja a construir no país um sistema fiscal criando uma situação de maior agravamento para o contribuinte, ao invés de aumentar a base tributária.
Dos impostos que vigoram neste momento no país, quais são os que mais têm contribuído para a arrecadação de receitas?
Olhando para o nosso ecossistema fiscal, no que diz respeito às receitas não-petrolíferas, temos o IVA como o imposto que mais contribui para os cofres do Estado. O IVA tem hoje 30% do peso de toda a receita não-petrolífera. A seguir temos o Imposto Industrial e o Imposto sobre o Rendimento do Trabalho a criarem uma espécie de rivalidade entre ambos. Olhando, por exemplo, para as receitas de 2023, temos o Imposto Industrial com cerca de 25% do total da receita, e o IRT com cerca de 21%. Mas, se analisarmos a receita do mês de Janeiro do ano em curso, verificamos o IRT com receitas mais expressivas, e acreditamos nós que, se tivermos de criar uma orgânica dos impostos considerando o nível de arrecadação, sem dúvidas, o IVA apareceria no topo como o que mais arrecada.
De um modo global, qual é o peso do sector petrolífero na receita tributária?
Hoje devemos considerar que o sector petrolífero ainda tem um maior peso, face às receitas [fiscais] não-petrolíferas. Se olharmos para os dados do ano passado, o sector petrolífero contribuiu com 7,1 biliões de kwanzas para os cofres do Estado, enquanto o sector não-petrolífero participou com 4,8 biliões. Estamos a falar de um contributo de cerca de 60% do sector petrolífero e 40% do não-petrolífero. Aqui há a destacar o facto de o Estado angolano estar cada vez mais a se posicionar no sentido de garantir que as receitas do sector não-petrolífero sejam suficientes para fazer face às despesas correntes, pelo menos aquelas que se consideram essenciais. É assim que, desde 2019, já somos capazes de pagar toda a função pública com receitas fiscais não-petrolíferas, e hoje já conseguimos, para além disso, ter um remanescente que é capaz de fazer face às necessidades correntes mais prementes.
Não temos então ainda as despesas correntes a serem cobertas apenas pelas receitas fiscais não-petrolíferas?
Ainda não conseguimos dizer que não têm sido utilizadas receitas petrolíferas para despesas correntes, mas o que podemos dizer hoje é que, diferente de há dez anos, em que, caso não houvesse receita fiscal petrolífera, o Estado literalmente parava, actualmente temos nas receitas fiscais não-petrolíferas capacidade suficiente para garantir o pagamento dos salários de toda a função pública e ainda termos um remanescente que seja capaz de fazer face às despesas correntes mais essenciais.
Até que ponto se sente o reflexo das receitas tributárias no esforço de diversificação da economia angolana?
A diversificação económica tem um percurso singular face à captação de receitas fiscais. Entretanto, considerando a necessidade de dinamizarmos a nossa economia, podemos dar alguns dados que provam que, efectivamente, o Estado vem desenhando o seu sistema fiscal impulsionando a economia local. Desde logo, podemos olhar sobre a parte do Imposto Industrial. Até 2014, o referido imposto tinha uma taxa geral de 35%. Naquela altura, foi ajustada para 30%, liberando assim receitas para as empresas se dinamizarem ainda mais, e foi feito depois um novo ajuste, tendo a taxa saído de 30% para 25%, que é a que hoje é aplicada. Estamos a falar de um período de 10 anos em que o Estado angolano liberou para as empresas 10% de receita fiscal que cobrava, para que elas tenham mais disponibilidade para diversificarem as suas actividades e consequentemente a nossa economia. Isto torna-se muito mais interessante se olharmos para o sector primário da economia, em que nós temos uma taxa de apenas 10%.
Refere-se à agricultura, certo?
Sectores como a agricultura têm hoje uma taxa de 10%, mas há bem pouco tempo tinham uma taxa de 15%. Portanto, há esta intenção de o Estado liberar receitas para impulsionar a economia. E estamos a falar apenas dos regimes gerais de tributação. Em 2022, nós compilámos o Código dos Benefícios Fiscais, que vem trazer diversos benefícios ligados às micro, pequenas e médias empresas, e também benefícios ligados ao investimento. Sem prejuízo destas reduções das taxas gerais que acabei de mencionar, o Código dos Benefícios Fiscais traz condições para que as empresas se sintam motivadas a fixarem-se e a desenvolver as suas actividades em Angola, com uma carga fiscal cada vez mais interessante.
“A reforma tributária em Angola tem um princípio muito simples: aumentar a receita com base no aumento da base tributária e melhoramento da eficiência de cobrança por parte da administração fiscal”
Não acha que as taxas dos impostos praticados em Angola estão, até certo ponto, desalinhadas com a realidade económica do país, quer do ponto de vista da capacidade contributiva das empresas, quer das famílias?
O nosso sistema fiscal, e mesmo no âmbito do processo de reforma que tem observado, tem procurado adequar-se à nossa realidade socioeconómica. Olhando para as taxas que nós aplicamos e para as realidades que possam se considerar semelhantes, podemos tirar algumas ilações. Por exemplo, em sede do IVA, nós hoje temos a taxa geral de 14% e temos uma taxa de 5% para tributarmos bens alimentares e também para tributarmos insumos, com particular realce para os insumos agrícolas. A nível da zona da SADC, não temos nenhum país com uma taxa abaixo dos 14%. Tínhamos as Maurícias com uma taxa de 12%, mas no ano passado eles ajustaram a sua taxa para 14%. Portanto, hoje, Angola e as Maurícias são os dois países que se apresentam com uma taxa mais reduzida do IVA. Olhando para o imposto sobre as empresas, e aqui de forma particular o Imposto Industrial, nós temos hoje uma taxa de 25%, e a média na zona é uma taxa na ordem dos 26,7%. Portanto, em relação a este critério estamos também abaixo do que outros países com realidade semelhante ao nosso praticam. Tivemos agora, por força da lei que aprova o OGE, um ajustamento na tributação das pessoas singulares em sede de IRT. A isenção para este imposto antes ia até 70 mil kwanzas, e passámos para 100 mil kwanzas. Na mesma lógica, reduzimos o IRT para pessoas que ganham entre 101 mil kwanzas e 150 mil kwanzas, eliminando a parcela fixa deste imposto, o que reduz a carga fiscal para estes contribuintes. Com os dados que acabo de avançar, cada um de nós pode tirar as suas ilações.
Alguns fiscalistas consideram que a reforma fiscal que tem vindo a ser implementada não permite aos empresários organizarem-se e rentabilizarem as suas actividades, na medida em que, segundo dizem, a reforma tem mais que ver com o aumento de impostos ao mesmo sujeito passivo, quando devia ser no sentido de dar origem a mais sujeitos passivos…
A reforma tributária em Angola tem um princípio muito simples: aumentar a receita com base no aumento da base tributária e melhoramento da eficiência de cobrança por parte da administração fiscal. Se me disserem que hoje o que os empresários têm é uma administração fiscal mais actuante, mais presente e que acompanha de forma mais particular o cumprimento das obrigações fiscais por parte dos contribuintes, eu vou afirmar que sim, que de facto é isso que acontece. Mas se me questionarem se o sistema fiscal está a ser construído criando uma situação de maior agravamento para o contribuinte, ao invés de aumentar a base, eu posso afirmar com muita clareza que não. Basta olhar para o percurso que a legislação está a seguir, e vamos verificar claramente que a tendência do legislador é ir diminuindo a carga fiscal dos contribuintes.
Mas são frequentes as reclamações ligadas ao imposto que as empresas pagam…
Fiz referência à redução da taxa do Imposto Industrial, assim como falo também do Sistema de Inteligência Tributária. O que se passa, e é importante percebermos isso, é que até 2010, quando se iniciou a reforma, pagava impostos quem quisesse, porque quem não pagasse, não lhe acontecia nada. A vida empresarial até àquela altura foi com esta base: o empresário identificava a sua situação e pagava o seu imposto, ou não, com o conforto de que nada lhe poderia acontecer, ou, pelo menos, nada lhe acontecia efectivamente. Em 2010, com o início da reforma, a administração fiscal começou a verificar e a fazer a cobrança dos impostos que são devidos. E aqui há um tema que se coloca, que é também o facto de muitas vezes determinadas empresas não pagarem os impostos que deviam pagar por algum desconhecimento, quer por parte deles, quer por parte dos contabilistas, e também temos de reconhecer que podem existir situações em que o próprio técnico tributário, analisando as contas do contribuinte, ele próprio cometa algum erro e, por via disso, possa fazer uma liquidação indevida. Mas é por causa disto tudo que o próprio sistema se apresenta hoje com vários elementos que levam a que o próprio contribuinte tenha várias garantias, como é o caso do direito de opção prévia, de reclamação e de impugnação judicial. Um dos problemas que os empresários apresentam, na visão deles, é o facto de, identificando-se irregularidades, as multas também serem pesadas. Se um contribuinte devia pagar determinado imposto e não pagou, a administração fiscal, ao verificar essa situação, para além de cobrar o imposto devido, por força da lei, aplica sobre este contribuinte as multas que estão estabelecidas, e temos aqui também alguma reclamação no sentido de essas multas serem muito pesadas.
E as multas são de facto altas?
Olhando para o processo de reforma, podemos facilmente verificar que as multas têm sofrido um processo decrescente. A reforma de 2019 reduziu as multas fiscais quase todas. Hoje por hoje, nós temos um sistema de inteligência que nos ajuda a verificar as irregularidades dos contribuintes, mitigando-se fortemente o erro humano. Porque se antes se apontavam erros humanos por parte dos técnicos tributários, nós hoje temos o sistema que faz análises e identifica situações que são irregulares, e o que os técnicos fazem é apenas analisar as irregularidades que o sistema identificou e notificar o contribuinte para vir justificar-se face às tais irregularidades.
“Até 2010, quando se iniciou a reforma, pagava impostos quem quisesse, porque quem não pagasse, não lhe acontecia nada. A vida empresarial até àquela altura foi com esta base: o empresário identificava a sua situação e pagava o seu imposto, ou não, com o conforto de que nada lhe poderia acontecer”
Como é que têm evoluído as receitas tributárias nos últimos anos?
Desde que iniciámos o processo de reforma tributária, em 2010, a receita fiscal não-petrolífera, porque a petrolífera vai seguindo sempre o dinamismo dos preços internacionais – quanto maior for o preço de petróleo, mais receitas o Estado angolano tem, e quando o preço do petróleo cai, a receita também cai –, tem seguido um caminho crescente. Por exemplo, comparando a receita dos últimos cinco anos, de 2019 para 2023, tivemos uma receita a crescer com uma média de 20% ao ano, e a tendência é mantermos esta média de crescimento.
Em termos concretos, quanto é que representa um crescimento médio de 20% ao ano, ou seja, qual foi a receita arrecadada em 2019, e quanto se atingiu em 2023?
Em 2019, a receita fiscal não-petrolífera foi de 2,2 biliões de kwanzas, e em 2023 esta mesma receita atingiu os 4,8 biliões de kwanzas. Tivemos aqui, em cinco anos, uma receita que mais que dobrou.
Quais são as perspectivas de arrecadação de receitas até ao final do ano?
Para 2024, continuamos a trabalhar numa perspectiva de melhorarmos a arrecadação. A receita fiscal tem hoje uma estimativa de arrecadação na ordem dos 14 biliões de kwanzas, dando nota de que em 2023 a receita foi de 12 biliões de kwanzas, o que quer dizer que neste ano [2024] perspectivamos arrecadar mais 2 biliões de kwanzas para os cofres do Estado.
Como anda a reforma do sistema fiscal angolano?
A este nível, nós actualizámos a reforma do património, portanto, fizemos uma alteração à tributação dos veículos motorizados, e temos, desde 2021, o Imposto sobre os Veículos Motorizados (IVM). Este imposto veio substituir a Taxa de Circulação e traz-nos aqui uma nova abordagem sobre como devemos tributar os veículos. Também ao nível da alteração do sistema tributário, ajustámos o IVA, um imposto que surge no nosso ordenamento jurídico em 2019, tendo sofrido, antes mesmo de entrar em vigor, algumas alterações, e a seguir tivemos pequenas alterações em várias leis que aprovam os sucessivos Orçamentos Gerais do Estado, sendo que no ano passado iniciámos uma discussão sobre uma alteração relativamente profunda a este diploma, e em Janeiro de 2024 vimos publicada a alteração ao Código do IVA. Estamos neste momento a trabalhar na proposta do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, um diploma que já foi levado à consideração da equipa económica [do Governo], já foi visto também em reuniões da Comissão Económica do Conselho de Ministros, e lá foi decidido que devíamos iniciar uma alta consulta pública.
Já está concluída a consulta pública recomendada?
A consulta pública foi iniciada em Dezembro do ano passado, hoje temo-la finalizada e estamos a concluir a proposta de diploma, juntando todos os dados que foram recolhidos a nível da consulta pública. No mês de Fevereiro voltamos a remeter para a apreciação em sede de Conselho de Ministros e consequente remessa à Assembleia Nacional. Quando olhamos às alterações do nosso sistema fiscal nos últimos dois anos, temos de dar ênfase a estas três iniciativas. Por um lado, a tributação em sede de património para os veículos motorizados, também a tributação em sede de IVA e agora, muito recentemente, a tributação dos rendimentos das pessoas colectivas.

E em que pé está a reforma tecnológica?
A nível da AGT, nós nos desafiamos a trazer inteligência nos sistemas, modernização dos procedimentos e desmaterialização dos processos. Foi assim que fizemos sair um assistente virtual que designamos Justinho, que é um WhatsApp em que se pode, de forma muito natural, iniciar uma conversa em chatbot e ter a possibilidade de fazer a liquidação de impostos simples, solicitar uma certidão de conformidade tributária, solicitar uma folha de cadastro com o número de identificação fiscal, evitando assim que para actos mais simples os contribuintes sejam forçados a deslocar-se a uma repartição fiscal. Lançámos também no ano passado, e isto é importante enfatizar, o Sistema de Inteligência Tributária (SIT). Até ao ano passado, nós tínhamos níveis precários de selecção de contribuintes para a fiscalização. Hoje temos o SIT, capaz de identificar os parâmetros de desvios por parte dos contribuintes e de seleccionar em vários perfis os que se apresentam com tendências desviantes no que diz respeito às suas obrigações fiscais.
Já se notam os resultados deste recurso tecnológico?
Com isso, nós melhorámos a selecção dos contribuintes a fiscalizar em sede de incumprimentos de obrigações tributárias e ao mesmo tempo fazemos fiscalizações direccionadas, ou seja, diferente do que acontecia no passado, em que a fiscalização obedecia a uma verificação a 360 graus, nós hoje, quando iniciamos uma fiscalização a um contribuinte, vamos verificar pontos concretos que o próprio SIT identifica.
É tudo o que a AGT conseguiu realizar na área tecnológica?
Não é tudo. Ainda para facilitar a vida dos contribuintes, lançámos o simulador tributário, uma ferramenta online que permite, quer aos contribuintes quer aos importadores, simular os tributos que poderão estar sujeitos a pagar em face de determinada realidade. Se eu sou um trabalhador, vou ter um salário, e quero saber quanto de IRT devo pagar, acedo ao simulador tributário, coloco os meus rendimentos, e este identifica de forma instantânea os impostos a serem cobrados. Se eu sou um importador e estou a importar determinada mercadoria e quero saber quais são as obrigações em sede de direito e outras imposições aduaneiras, acedo de igual modo ao simulador tributário, identifico essas obrigações, e ele me dará os dados de forma automatizada. Estamos também a terminar vários módulos no processo de desmaterialização. Hoje nós já temos o IRT para os contribuintes do Grupo A a serem declarados via sistema, sem necessidade de report de mapas de salários. O processo de desmaterialização está em curso, com o objectivo de ainda neste ano termos 100% dos processos na parte fiscal totalmente desparametrizados. Ainda no que diz respeito ao desenvolvimento tecnológico, importa referir que iniciamos uma nova abordagem para a tributação em sede de património. Temos actualmente uma nova plataforma para a cobrança de IVM.
Quanto é que a reforma tecnológica custa à AGT?
O SIT está construído com a parceria da SASI – uma ferramenta de busca e tratamento de dados. Adquirimos este sistema no âmbito do contrato geral que temos para a modernização tecnológica da administração tributária, celebrado com a empresa TIS e num valor de 115 milhões de dólares para uma parceria que deverá durar três anos, e é dentro deste contrato que existe todo este processo de modernização tecnológica que estamos aqui a fazer referência. O motor de busca, como costumamos dizer, é da SASI, e internamente os nossos desenvolvedores vão criando os parâmetros de identificação de riscos, quer considerando os dados que a própria administração recebe dos contribuintes, quer considerando sistemas de interoperabilidade que a administração fiscal tem com outros entes para melhor identificação dos cumprimentos de obrigações fiscais.
*Entrevista publicada na edição impressa Março/Abril