Para liderar uma empresa, é preciso, por vezes, ser-se criativo – principalmente em tempos de incerteza. Como por alturas do 25 de Abril de 1974, bicho-papão das elites residentes em Portugal.
O negócio da Garland, como da generalidade das empresas, caiu vertiginosamente. Não havia nem exportação nem importação. Era preciso encontrar uma alternativa para aguentar aquele momento de indefinição histórica. “O negócio caiu a pique. As grandes empresas saíram do país, não havia importação e exportação”, recorda Bruce Dawson, presidente não-executivo (chairman) da Garland, à FORBES.
O irmão, Peter Dawson, hoje presidente-executivo, teve uma ideia que ajudou a empresa de transporte a aguentar aqueles anos: o transporte de mobílias das famílias numa época de êxodo de muitos portugueses e estrangeiros abastados. “Ingleses”, na maioria, brinca Peter à FORBES.
A Garland, fundada em 1776, é uma empresa especializada em transporte e logística, e já assistiu a crises atrás de crises num país tão pródigo em criá-las.
Viu regimes a cair, outros a elevarem-se, superou crises económicas e políticas, e ficou cá para contar como as superou. Esse saber-fazer em tempos de crise também é visível nos períodos de paz económica e social.
Hoje, sabem que a gestão deve ser feita para acautelar novos embates, pelo que preferem ser uma empresa pouco alavancada e com uma situação de liquidez confortável.
O objectivo é apresentar-se leve e ágil, pronta a aproveitar oportunidades sem bagagem nem despesas fixas atrás. E, no que toca a diversificar negócio, a Garland está atenta a oportunidades, apesar de ser uma empresa “conservadora”, nas palavras de Bruce.
Aposta em nichos, como o transporte especializado de produtos vários a granel. E tem uma lança recente num país estrangeiro, com a abertura de um escritório em Marrocos, em Casablanca, e dois em Espanha, em Barcelona e Valência, em 2014.
Foi uma internacionalização que nasceu com o detectar de oportunidades específicas. “Em Marrocos, foi uma oportunidade focada inicialmente na parte dos contentores de granel, de líquidos e secos”, no sector transitário, segundo Peter.
Já em Espanha, oportunidades particulares na área da navegação apareceram. “Tínhamos conhecimentos lá”, diz Bruce, que lhes abriram negócio nas duas cidades portuárias. “São duas oportunidades perto de casa”, acrescenta, pelo que o risco é mais controlável.
Empresa leve
A Garland não tem frota própria, nem de pesados nem de barcos. Os grandes activos próprios da empresa limitam-se, grosso modo, às infra-estruturas de armazenamento das mercadorias. “O camião não é importante. O mais importante é a carga que está lá dentro”, segundo Bruce.
Isto é, o serviço. A companhia escolheu ter uma postura mais leve em termos de bens de capital. Já experimentaram ter frota própria, mas adquiriram-na “na pior altura”: durante a crise financeira de 2008. Os 15 camiões comprados foram uma má decisão.
“Não conseguimos cargas em diversas partes da Europa por causa dessa crise e resolvemos vender logo a frota”, o que aconteceu meses depois, explica Bruce. Foi uma decisão “muito rápida”, feita com um pequeno prejuízo. “Como os ingleses dizem, ‘we’ve cut our losses quickly’ [eliminámos rapidamente as nossas perdas]”, afiança.
Bruce sublinha que a especialidade da sua empresa não é ser dono de frotas, mas fornecer serviço de carga – tanto na terra como no mar – e, em menor escala, gerir património imobiliário, esse sim pertencente à Garland e com uma unidade interna dedicada a ele, a Garland Gestão Imobiliária. “No mundo para onde estamos a caminhar, temos de concentrar o negócio no core business de uma empresa. O resto, subcontrata-se”, resume Bruce.
A família Dawson aposta igualmente na tecnologia, um factor de ganhos de eficiência – e de negócio. A concorrência das multinacionais também presentes em Portugal foi o motor da mudança nesta dimensão. “Se nós não conseguimos investir em sistemas tecnológicos, não vamos sobreviver.
Os preços estão cada vez mais a cair, as exigências dos clientes estão a aumentar, e muitas dessas exigências têm de ser controladas tecnologicamente”, defende Peter.
Os seus clientes exigem visibilidade e querem saber sempre onde está a carga a determinado momento. A Garland apostou num sistema de track-and-trace, permitindo aos clientes ver quando a sua carga foi recolhida, quando chega ao armazém, quando sai, a rota, e quando foi finalmente entregue. “Estamos a meio da implementação deste sistema novo”, ressalva Peter.
Aquele implicou uma reorganização interna dentro da área de transporte: criou-se uma unidade para o planeamento dos meios de distribuição (camiões, contentores, aviões), e a área de apoio ao cliente, que trata da documentação e de resolução de eventuais problemas.
A somar a estas duas está a transversal – e naturalmente já existente – área comercial, cujo objectivo é o de encontrar novos clientes para a casa. Mas, além destas exigências tecnológicas, é preciso ter uma cara, dar o conforto da confiança que só seres humanos podem dar. “A nossa ideia é de ter contacto de pessoas com o cliente. A parte tecnológica é importante, mas queremos manter a parte humana com os clientes. Contacto telefónico e se necessário visitá-los”, defende Peter.
Atraso nas infra- estruturas
Como empresa que depende da disponibilidade da marinha mercante para distribuir as mercadorias dos seus clientes, a Garland mantém-se atenta ao clima laboral nos portos portugueses.
E tanto Peter como Bruce manifestam confiança nos portos, mas apreensão com o cansaço de alguns armadores que desistiram de Portugal, preferindo ancorar em Espanha. “A navegação é uma área tradicional da casa, somos agentes de armadores. Mas os armadores mudam muito de ideias, não temos muito controlo nela”, assume Peter.
A instabilidade laboral no Porto de Lisboa é uma das razões para esta desistência da parte dos armadores. A Garland segue com atenção os diferendos entre os operadores dos terminais e os sindicatos.
“Nós, e outras organizações de carregadores, exportadores, sentimos uma grande pressão atrás de nós com os armadores insatisfeitos”, diz Peter.
Há uns que saíram de Portugal e não voltaram – e quem ganha são os portos do país vizinho, defendem os irmãos. “Se um armador decidir não vir a Lisboa, o impacto pode ser muito grande”, diz Bruce. “Se nós perdemos um, o nosso lucro, a última linha, fica afectado”.
Porém, nenhum dos irmãos tece considerações sobre a justeza das greves no porto lisboeta. “Não estamos por dentro dos conflitos. Nós queremos é a paz no porto de Lisboa. Está muito bem desviar navios para Setúbal, mas a maior parte dos produtos que entram e saem em Lisboa é pelo lado norte do rio Tejo”, analisa Bruce.
Em termos de infra-estruturas, os dois responsáveis pela Garland notam que há um enorme atraso na sua concretização. “A costa atlântica é um dos maiores bens que existem neste país”, assevera Bruce.
Mas as políticas públicas não estão à altura do imenso activo ao dispor de Portugal. A inexistência de ligações ferroviárias é um problema, ainda à espera da conclusão de uma obra tão estrutural como a da nova ligação entre Sines e Espanha.
Já muito atrasada face à inauguração do porto, em 1978. “Nunca houve uma linha ferroviária para levar os contentores para o inland de um porto muito eficiente e que funciona muito bem”, critica Bruce. “Nós estamos na costa Oeste da Península Ibérica. Por que é que um barco tem de ir a Barcelona quando podemos pôr as cargas em Espanha com boas vias de comunicação?”, lamenta.
E descreve a importância do porto de Sines graças ao facto de estar numa posição privilegiada, sendo o primeiro porto de entrada na Europa de navios provenientes das Américas e de África. “Precisamos de comboios rápidos que cheguem àquela zona. Precisamos de ser mais eficientes”, defende.
Bruce confessa-se céptico sobre o destino do novo porto de Lisboa. “Já demos a volta a todo o Tejo relativamente ao sítio. Entretanto, Lisboa já perdeu”, lamenta. Os irmãos defendem que a ausência de decisões definitivas prende-se com o facto de o Governo ainda não ter assegurado procura. “Um terminal de contentores tem sempre de ter hoje um armador que pegue nesse terminal. Porque é que eles não avançam com o Barreiro? Penso que é porque ainda não apareceu um grande armador disposto a fazer um contrato de 20 anos para utilização do terminal”, aventa Bruce.
E fala sobre as dúvidas relativas à natureza do novo porto: será exclusivamente para contentores ou servirá de terminal multiusos? “O que se lê nas entrelinhas é que ainda não devem ter negócio suficiente para ser só de contentores”, diz. Indefinição eterna. Um Portugal que parece que não muda, 242 anos depois.