Projecto procura músicos que salvem instrumento cabo-verdiano da extinção

Domingos Fernandes fez carreira militar, com formação em Cuba e União Soviética, mas a história reservou-lhe um destino diferente, como um dos últimos guardiões da cimboa, num projecto para evitar que o instrumento cabo-verdiano desapareça. A oficina ocupa todo o terraço da sua casa em São Domingos, arredores da cidade da Praia, onde é conhecido…
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A oficina ocupa todo o terraço da sua casa em São Domingos, arredores da cidade da Praia, onde é conhecido pelo nome de artesão, mestre Pascoal, que desde 2006 já ensinou 400 pessoas a encontrar as matérias-primas e a construir o instrumento.
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Domingos Fernandes fez carreira militar, com formação em Cuba e União Soviética, mas a história reservou-lhe um destino diferente, como um dos últimos guardiões da cimboa, num projecto para evitar que o instrumento cabo-verdiano desapareça.

A oficina ocupa todo o terraço da sua casa em São Domingos, arredores da cidade da Praia, onde é conhecido pelo nome de artesão, mestre Pascoal, que desde 2006 já ensinou 400 pessoas a encontrar as matérias-primas e a construir o instrumento.

Parece um violino na forma mais simples: o corpo é a cabaça seca (“bule”) de uma abóbora amarga que ninguém come, as cordas são feitas de rabo-de-cavalo ou crina e a pele é recolhida de uma cabra não muito velha, nem muito nova, para ter o som perfeito, explica o artesão, entre as bancadas da oficina.

Estas características transformam a lista de materiais numa história complexa de resiliência para se chegar a uma cimboa genuína, tal a exigência e atenção que se impõe.

“Não haverá duas iguais. Não nos podemos dar ao luxo de fazer um braço muito alongado se não tivermos rabo-de-cavalo que chegue às duas extremidades”, exemplificou.

Dos muitos formandos de Pascoal, poucos ficaram para perpetuar esta arte: a emigração levou quase todos os que, em 2022, entraram no projeto do Instituto do Património Cultural (IPC) com apoio do programa Procultura, do Camões – Cooperação Portuguesa e União Europeia (UE).

Com estas partidas, “percebeu-se que valeria a pena redefinir o perfil”, explica a diretora da área de património imaterial do IPC, Carla Semedo.

Ou seja, além de incluir desempregados, deve começar nas próximas semanas a formação do mestre Pascoal para músicos e professores, envolvendo escolas e associações musicais.

“O projecto vai terminar em Abril e importa que haja continuidade, sustentabilidade, que não passe só pelo IPC, mas pela sociedade civil, pelas dinâmicas musicais e artísticas”, aponta Carla Semedo.

“Deixar algumas cimboas nas escolas é um passo para que, juntamente com o piano ou a guitarra, também possa ser ministrada” em aulas de música, acrescenta.

O instrumento chegou às ilhas “na memória dos negros africanos, trazidos do continente”, na época da escravatura, explica Domingos Fernandes, sendo o mais antigo instrumento de corda do arquipélago, o único sem origem na Europa ou nas Américas.

A tradição manda que acompanhe os grupos de batuque, mas tem potencial para se alinhar com outros géneros musicais e essa será uma das chaves para que não desapareça.

“O instrumento não tem limitação, quem tem limitação é o homem”, refere, ao recordar memórias de juventude com festas improvisadas que incluíam voz e cimboa.

“O que é preciso é talento”, só que “os jovens querem coisas com resultado imediato” e este não é um instrumento fácil no primeiro encontro. Domingos Fernandes, citado pela Lusa, puxa pela última que fabricou, uma encomenda preparada para a embaixada cabo-verdiana no Brasil.

Para quem nunca pegou numa, é difícil arrancar-lhe um som: o arco desliza na corda, mas em silêncio, até que o mestre artesão o passa por resina e assume o comando, porque há uma posição certa para tocar – e eis que as melodias começam a sair.

Apesar da formação em artilharia terrestre e mecânica, o antigo capitão cabo-verdiano que completa 65 anos em Abril sempre preferiu o artesanato e ainda estava no ativo, em 2006, quando aprendeu a construir cimboas com Mano Mendes – dois anos antes da morte da figura então mais ligada ao instrumento.

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