Maria Domingas Pinto Cardoso representa uma nova geração de diplomatas guineenses comprometidos com a integração lusófona e o reposicionamento internacional do país. Nesta entrevista à FORBES ÁFRICA LUSÓFONA, partilha a sua visão sobre os desafios da presidência guineense da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), a importância estratégica do português como instrumento de mobilidade e desenvolvimento, e o papel transformador das mulheres e da juventude na diplomacia contemporânea.
Como avalia a utilidade e praticidade da língua portuguesa na Guiné-Bissau, uma vez que, mesmo sendo a língua oficial, continua a não ser a língua de comunicação?
A língua portuguesa, embora não seja ainda a língua de comunicação mais usada no quotidiano da maioria da população, continua a ser o instrumento de integração internacional da Guiné-Bissau. O facto de o crioulo guineense ser predominante no dia-a-dia, não diminui a importância do português, mas revela o caráter multilingue e multicultural do país. O desafio é reforçar políticas educativas e culturais que aproximem cada vez mais o português da população, sem nunca desvalorizar a riqueza das línguas nacionais. A realidade linguística da Guiné-Bissau é marcada por uma grande diversidade e riqueza cultural. O crioulo é a língua mais falada no dia-a-dia e funciona como um veículo de comunicação nacional e de identidade coletiva. O português, embora seja a língua oficial e a língua de ensino formal, não alcançou ainda a mesma difusão social, em parte devido a factores históricos, sociais e estruturais.
Neste pacote de factores que acaba de enumerar, não se pode incluir também a alfabetização?
Sim. Isto deve-se igualmente à taxa de alfabetização e à qualidade do sistema educativo que têm impacto directo na difusão do português. Se o acesso à escola não é universal ou se as condições de ensino não são suficientemente sólidas, a presença do português no quotidiano torna-se naturalmente mais limitada. Em segundo lugar, o crioulo, pela sua proximidade cultural e facilidade de uso, mantém-se como língua de comunicação espontânea entre os guineenses. No entanto, a utilidade do português na Guiné-Bissau é inegável. Ele é a língua que garante a unidade nacional num país multilingue, pois permite que cidadãos de diferentes etnias e línguas maternas comuniquem num código comum. É também a língua de acesso ao ensino superior, à administração pública, à justiça, à diplomacia e ao mercado internacional, sendo um instrumento indispensável de mobilidade social e de integração no mundo globalizado.
Acresce que o português insere a Guiné-Bissau numa comunidade de mais de 260 milhões de falantes espalhados por quatro continentes, o que constitui uma vantagem competitiva em termos de cooperação, comércio e projecção internacional. É, portanto, uma língua de oportunidades, de ligação à CPLP – Comunidade de países de Língua Portuguesa – e de inserção no espaço lusófono e global.
Perante isso, que desafios se impõem?
O desafio é aproximar cada vez mais o português do quotidiano da população, sem desvalorizar o crioulo e as demais línguas nacionais, que fazem parte do património cultural do país. Isso exige políticas públicas consistentes de educação e cultura, a valorização do bilinguismo e a promoção de uma aprendizagem mais inclusiva e adaptada às realidades locais. Em suma, o português não é apenas uma língua oficial: é uma ferramenta de unidade, de progresso e de internacionalização. O crioulo continuará a ser a língua de identidade e proximidade, mas o português será sempre a língua de oportunidade e de futuro.
A senhora já desempenhou várias funções no Ministérios de Negócios Estrangeiros da Guiné-Bissau, onde faz carreira desde 1990, e é hoje é ponto focal junto à CPLP, bloco que o seu país assumiu a presidência muito recentemente. Qual é o seu sentimento e que oportunidades identifica?
É um motivo de grande honra e responsabilidade ver a Guiné-Bissau assumir, pela segunda vez, a presidência da CPLP. O sentimento é de confiança e compromisso com os ideais que unem os nossos povos, tonando-se assim numa oportunidade única para reforçar a cooperação, sobretudo nos domínios da mobilidade, da juventude e da educação. Identifico como oportunidade o reforço da cooperação no domínio da educação, da mobilidade e da juventude, consolidando a CPLP como um espaço cada vez mais útil para os cidadãos.
Na tomada de posse da presidência da CPLP, identificou-se a ausência de mulheres à testa da nação. Acredita que este fenómeno vem da ausência de proatividade das mulheres ou de um machismo acentuado no continente e no mundo?
A ausência de mulheres à testa da nação não pode ser explicada pela falta de proatividade feminina. Antes de mais, creio que ela reflete barreiras estruturais e culturais que persistem e, por conseguinte, limitam o seu acesso a espaços formais de poder. Trata-se de um fenómeno global, não exclusivo de África, mas também em muitas partes do mundo. Não é por falta de capacidade ou vontade das mulheres, mas pelas tais barreiras que ainda limitam a sua ascensão. Pelo contrário, as mulheres africanas e lusófonas têm demonstrado, ao longo da história, uma enorme capacidade de liderança, resiliência e contribuição decisiva para as sociedades. É fundamental continuar a promover políticas de igualdade de género e empoderamento feminino para que mais mulheres cheguem a posições de decisão, na medida em que apesar dos avanços registados, ainda vivemos num mundo em que as estruturas políticas e sociais têm sido concebidas predominantemente em torno de lideranças masculinas. No entanto, acredito que estamos a viver um momento de viragem. Cada vez mais mulheres assumem posições de destaque nos governos, parlamentos, universidades, diplomacia e sector privado. No contexto da CPLP, vemos exemplos inspiradores de mulheres a liderar ministérios, embaixadas e organizações internacionais, o que demonstra que a mudança é possível e está em curso.
Há ainda então um caminho a se fazer neste sentido…
O desafio agora é acelerar este processo, através de políticas de igualdade de género, promovendo a educação de meninas e jovens mulheres e incentivando a sua participação em todos os níveis da vida pública. Mais do que uma questão de justiça social, trata-se de uma necessidade estratégica: sociedades que incluem as mulheres na liderança são mais equilibradas, inovadoras e prósperas.
“A utilidade do português na Guiné-Bissau é inegável. Ele é a língua que garante a unidade nacional num país multilingue, pois permite que cidadãos de diferentes etnias e línguas maternas comuniquem num código comum.”
Sendo Portugal membro da CPLP, instituição que se propõe a promover a liberdade de circulação entre povos dos países-membros, qual a motivação para o episódio recente em que cerca de 40 estudantes guineenses estiveram retidos à entrada do aeroporto de Lisboa?
Cada situação concreta deve ser analisada com rigor e diálogo institucional. A CPLP defende a mobilidade e a circulação como valores centrais, e é nesse espírito que devemos trabalhar para evitar constrangimentos desnecessários aos cidadãos, sobretudo aos jovens estudantes. O mais importante é reforçar os mecanismos de comunicação entre os Estados membros para que a livre circulação seja uma realidade efectiva e não apenas um princípio.
Dada a sua experiência no Ministério dos Negócios Estrangeiros, como avalia as relações exteriores da Guiné-Bissau hoje?
As relações exteriores da Guiné-Bissau encontram-se num momento de consolidação e reposicionamento. Ao longo dos últimos anos, o país tem reafirmado o seu compromisso com o multilateralismo projectando uma diplomacia de cooperação internacional e buscando afirmar-se como parceiro credível na região onde mantém uma inserção ativa em organismos multilaterais como a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), a União Africana e a CPLP, espaços que ampliam a sua voz e criam oportunidades de cooperação política, económica e cultural. O facto de a Guiné-Bissau ter assumido recentemente a presidência da CPLP é um sinal claro de confiança da comunidade internacional na nossa capacidade de liderança. Avalio, portanto, que as relações exteriores da Guiné-Bissau estão num processo de maturidade e modernização, com foco na diversificação de parcerias, no reforço da diplomacia económica e no fortalecimento da cooperação no espaço lusófono e africano. O desafio é transformar este dinamismo em benefícios concretos para os cidadãos guineenses, consolidando a imagem do país como parceiro estável e credível no concerto das nações.
Quais os activos mais promissores, a nível de relações exteriores que a Guiné-Bissau hoje tem?
A Guiné-Bissau dispõe de vários activos estratégicos que hoje constituem vantagens competitivas no plano internacional. O primeiro é a sua posição geoestratégica, pois situada na costa atlântica, é uma verdadeira ponte entre a África Ocidental, a Europa e as Américas. Outro activo é a diversidade cultural e linguística que fortalece a inserção internacional do país. Sendo parte integrante da CEDEAO e da CPLP, a Guiné-Bissau pertence simultaneamente a dois espaços multilaterais que ampliam o seu alcance diplomático, permitindo-lhe dialogar com mais de 300 milhões de falantes de português e mais de 400 milhões de cidadãos da África Ocidental, o que é um duplo e raro valor acrescentado. Acresce a isso a riqueza dos recursos naturais, tanto marítimos como terrestres, que podem ser alavancados através de parcerias internacionais responsáveis e sustentáveis. Mas talvez o maior activo seja o capital humano jovem, que representa energia, criatividade e capacidade de inovação para projectar o país no futuro. Em síntese, a Guiné-Bissau tem hoje activos geoestratégicos, culturais e económicos que, devidamente potenciados, através da diplomacia e da cooperação internacional, podem tornar-se motores de crescimento socioeconómico e de maior integração. Além do bilinguismo institucional que a liga a espaços continentais e lusófonos, os recursos naturais e, sobretudo, o potencial da sua juventude. Estes elementos, bem articulados com uma diplomacia moderna, abrem portas para uma maior integração económica e para novas oportunidades de cooperação internacional.

Pode a Guiné-Bissau vislumbrar um desenvolvimento socioeconómico com base no seu posicionamento hoje no mundo?
Sem dúvida. O posicionamento geopolítico, aliado aos recursos naturais oferece condições para atrair investimento, diversificar a economia e impulsionar o desenvolvimento sustentável. O desafio é transformar esse potencial em políticas consistentes e parcerias estratégicas. A Guiné-Bissau tem todas as condições para vislumbrar um desenvolvimento socioeconómico sustentado a partir do seu posicionamento actual no mundo. O país encontra-se numa localização geoestratégica privilegiada, na costa atlântica da África Ocidental, que o coloca como ponto de ligação natural entre a África, a Europa e as Américas. Esta posição, somada à pertença simultânea à CEDEAO e à CPLP, amplia a sua capacidade de inserção internacional e cria oportunidades únicas de integração económica e cooperação multilateral.
Mas, como promover o desenvolvimento socioeconómico?
O desenvolvimento socioeconómico pode ser alavancado a partir de uma Diplomacia económica activa, da Valorização dos recursos e sectores promissores e do Capital humano jovem. Naturalmente, persistem desafios estruturais, como a necessidade de consolidar a estabilidade política, melhorar as infra-estruturas e reforçar a capacidade institucional. Em síntese, a Guiné-Bissau tem hoje um posicionamento que pode ser transformado em vantagem competitiva: a sua geografia, os seus recursos, a sua pertença a espaços multilaterais relevantes e, sobretudo, o seu povo. O desenvolvimento socioeconómico não é apenas uma possibilidade distante, mas um caminho real, que depende de transformar oportunidades em resultados concretos para os cidadãos.
Quais os maiores desafios e ganhos nas suas funções de directora-geral da cooperação internacional e ponto focal da CPLP?
O exercício destas funções coloca-me diante de uma dupla responsabilidade: por um lado, garantir que a cooperação internacional da Guiné-Bissau responda às prioridades nacionais de desenvolvimento; por outro, assegurar que o país desempenhe um papel activo e construtivo no seio da CPLP. O maior desafio que se pode vir a traduzir em ganho é ver a Guiné-Bissau mais integrada e respeitada nos fóruns internacionais. Outro desafio situa-se, acima de tudo, na necessidade de transformar os compromissos políticos assumidos nos fóruns multilaterais em resultados concretos para os cidadãos, sobretudo em áreas como a educação, mobilidade e desenvolvimento económico. Em termos de desafios, destacaria, em primeiro lugar, o reforço da visibilidade e integração internacional da Guiné-Bissau, que se traduz em maior participação em iniciativas regionais e globais. Em segundo lugar destacaria a questão da coordenação institucional, uma vez que a cooperação internacional exige diálogo constante entre Ministérios, parceiros externos e organizações multilaterais. O terceiro será a construção de credibilidade: num mundo cada vez mais competitivo, a Guiné-Bissau precisa afirmar-se como um parceiro estável, previsível e confiável. Cada desafio é, ao mesmo tempo, uma oportunidade de reforçar a imagem externa do país, de abrir caminhos para o desenvolvimento e de aproximar a diplomacia das reais necessidades da população. Acredito que este equilíbrio entre desafios e ganhos é o que dá sentido ao percurso de qualquer quadro no Ministério dos Negócios Estrangeiros e ao papel que a Guiné-Bissau hoje assume no concerto das nações.
O grupo de música Calema foram nomeados embaixadores da CPLP, a 26 de Agosto, depois de São Tomé e Príncipe ter deixado a presidência da CPLP. O que essa escolha lhe parece?
Regozijo-me profundamente com esta feliz escolha. O grupo Calema é um exemplo de talento jovem que, através da música, promove a língua portuguesa e os valores de união da CPLP. A sua nomeação é simbólica e inspiradora, não apenas pelo seu talento musical, mas pelo que representam em termos de identidade e integração cultural sobretudo para a juventude, mostrando que a cultura é um veículo essencial de aproximação entre os nossos povos. A música tem a capacidade única de ultrapassar fronteiras e de criar pontes entre os povos, e os Calema têm desempenhado esse papel com enorme sucesso, levando a língua portuguesa e a cultura lusófona a públicos globais.
O grupo Calema é um exemplo de talento jovem que, através da música, promove a língua portuguesa e os valores de união da CPLP.
Acredita que, enquanto embaixadores, a dupla de músicos contribuirá para dar mais visibilidade à CPLP?
Num espaço como a CPLP, onde a língua portuguesa é o elemento central de união, ter artistas jovens e com forte alcance internacional reforça a visibilidade da organização, inspira as novas gerações e fortalece a ideia de que a lusofonia é viva, dinâmica e aberta ao mundo. Além disso, a escolha dos Calema é particularmente relevante porque mostra que a CPLP valoriza não apenas os aspetos políticos e institucionais, mas também a criatividade, a juventude e a inovação cultural. Este equilíbrio é essencial para aproximar a organização dos cidadãos e, sobretudo, dos jovens, que são o futuro da comunidade. Por tudo isso, considero que esta decisão foi acertada e visionária, e acredito que os Calema, com a sua música e o seu exemplo, contribuirão para projectar ainda mais a CPLP como um espaço de união, diversidade e partilha.
Quais os maiores desafios para estes dois anos de presidência da Guiné-Bissau na CPLP?
O maior desafio será transformar compromissos em resultados concretos e palpáveis para os cidadãos. É imperativo reforçar a mobilidade, promover a cooperação económica e apoiar políticas de educação, cultura e juventude. Outro desafio é garantir que a CPLP seja cada vez mais reconhecida não apenas como uma organização política, mas como uma comunidade de povos que se sentem próximos e unidos pela língua e pela história. A presidência da CPLP constitui, para a Guiné-Bissau, uma honra e uma responsabilidade acrescida. O maior desafio é transformar o capital político da organização em resultados tangíveis para os cidadãos dos Estados-membros, reforçando a percepção de que a CPLP não é apenas um espaço de diálogo entre governos, mas uma verdadeira comunidade de povos. Um dos grandes desafios será a implementação efectiva do Acordo de Mobilidade, garantindo que a liberdade de circulação se traduza numa realidade prática para estudantes, profissionais e empresários.
A implementação do Acordo de Mobilidade é um tema que está a ser complicado de se gerir, certo?
Trata-se de um ponto sensível e altamente esperado pelos cidadãos, que exige grande coordenação política e administrativa entre os Estados-membros. Outro desafio é o de aprofundar a cooperação económica, tornando a CPLP um espaço mais atrativo para investimentos e para o sector privado. Precisamos diversificar áreas de cooperação, promover o comércio intracomunitário e explorar sectores estratégicos como a agricultura, a energia, o turismo e a economia azul. Também é fundamental investir na juventude e na cultura. A CPLP deve ser cada vez mais um espaço de oportunidades para os jovens, seja em termos de educação, de empreendedorismo ou de participação cívica. A cultura, por sua vez, é a alma da comunidade e um instrumento poderoso de diplomacia e de aproximação entre os nossos povos. Finalmente, há o desafio de reforçar a visibilidade internacional da CPLP, tornando-a mais influente e posicionada nas grandes discussões globais – desde as mudanças climáticas à segurança alimentar e à igualdade de género.
E qual é a visão da Guiné-Bissau quanto a isso?
A Guiné-Bissau quer contribuir para que a organização [CPLP] seja reconhecida não apenas pela sua história e pela sua língua comum, mas também pela sua capacidade de inovar e de se adaptar aos novos tempos. Em síntese, os próximos dois anos serão decisivos para aprofundar a mobilidade, dinamizar a cooperação económica, valorizar a juventude e a cultura, e projectar a CPLP no cenário internacional.
Uma vida dedicada à cooperação e à diplomacia
Guineense de nacionalidade, Maria Domingas Pinto Cardoso é licenciada em Germânicas – Línguas e Literaturas Modernas (variante Inglês-Alemão) pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, em1985. Ministra concelheira de carreira, com passagens pela Secretaria de Estado da Cooperação, Ministério do Plano e Cooperação Internacional da Guiné-Bissau, encontra-se actualmente no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Neste momento acumula a função de diretora-geral da Cooperação Internacional do país, com a de ponto focal da CPLP.





