A Kizomba é um estilo musical e de dança que nasceu em Angola como expressão genuína da juventude urbana, difundindo-se rapidamente por várias regiões do país e, mais tarde, por outros pontos de África e da Europa. O género emergiu no final da década de 1970 e início dos anos 1980, no seio do chamado “Movimento Kizomba”, num contexto de forte efervescência cultural e de afirmação identitária. A sua sonoridade, marcada por influências do semba angolano e do zouk caribenho, deu origem a uma fusão envolvente que conquistou públicos e pistas de dança, transformando-se num fenómeno social e cultural de longo alcance.
Embora o “Movimento Kizomba” tenha sido protagonizado por vários artistas, o músico Eduardo Paim destacou-se como figura central no processo de consolidação e divulgação do género, sendo amplamente reconhecido como o “Rei da Kizomba” e, para muitos, o seu verdadeiro “pai”. Desde os primeiros passos, a Kizomba foi alvo de debates e controvérsias, sobretudo no que diz respeito à sua relação com o zouk. Ainda assim, o tempo encarregou-se de confirmar a sua força identitária: a Kizomba ultrapassou fronteiras, uniu culturas e afirmou-se como uma linguagem universal, onde música e dança se cruzam como expressão de pertença e partilha.
Hoje, passadas várias décadas, a Kizomba dispõe de um circuito internacional próprio, com festivais que há mais de vinte anos reúnem milhares de dançarinos, músicos, coreógrafos e instrutores de todo o mundo. É neste contexto que a FORBES ÁFRICA LUSÓFONA conversou com alguns dos protagonistas desta cena global, entre eles Łukasz e Karolina Kowalczyk, um casal de instrutores polacos que transformou a paixão pela Kizomba num projecto de vida e numa missão de difusão cultural.
Quando a Kizomba se transforma num projecto de vida

Naturais da Polónia, casados há mais de quinze anos e pais de dois filhos, Łukasz e Karolina fundaram, em 2021, a “Akademia Kizomby Vamula”. O nome “Vamula” – expressão de gíria que significa “vamos lá” – traduz o espírito energético e positivo que norteia o casal, hoje dedicado ao ensino do Semba e da Kizomba em workshops, festivais e eventos culturais, tanto na Polónia como em diversos países.
Ao recordar o primeiro contacto com a Kizomba, Karolina descreve-o como “amor à primeira vista, pela música e pela dança”. Já Łukasz revela um percurso mais gradual. “Durante os primeiros dois anos de aprendizagem da Kizomba, eu ainda preferia a bachata. O verdadeiro amor pela Kizomba começou quando passámos a frequentar festivais e workshops com professores angolanos, que nos ensinaram a dançar como se faz em Angola. Foi aí que descobrimos músicas como Kizomba, Semba e Kuduro – algo muito diferente do que se ouvia na Europa”, explica.
A viragem decisiva ocorreu em 2014, com a primeira viagem do casal a Angola. “Ficámos em casa de uma família amiga, conhecemos a vida de pessoas comuns, participámos em eventos e workshops. Foi aí que sentimos que a Kizomba estava verdadeiramente próxima dos nossos corações”, recorda Łukasz, sublinhando a importância do contacto directo com a cultura de origem.
Apesar dessa ligação profunda, o percurso de ambos na dança começou anos antes. Em 2008, Łukasz estudava dança de salão e Karolina dedicava-se ao samba. A Kizomba surgiu quase por acaso, durante festas de salsa e bachata, através de anúncios de aulas que despertaram curiosidade. Pouco depois, encontraram em Varsóvia a escola Montuno Aye, onde iniciaram uma formação mais estruturada.
Com 17 anos de experiência acumulada, participações em congressos e festivais internacionais, aulas individuais e colectivas, a Kizomba tornou-se parte integrante do quotidiano familiar. “Estamos envolvidos com a Kizomba há 17 anos. Decidimos conscientemente fazer dela um dos pilares das nossas vidas, a par da família, do trabalho, da saúde e do lar”, afirmam. Para o casal, a dança é também um espaço de refúgio e conexão. “É muitas vezes uma fuga bem-vinda aos problemas do dia a dia. Um tempo que passamos juntos, que fortalece o nosso relacionamento e o nosso casamento.”
Ainda assim, reconhecem as exigências do meio. “Muitos instrutores procuram o perfeccionismo, o que gera estresse e, a longo prazo, pode destruir a alegria de dançar”, admitem. O trabalho vai muito além da pista, envolvendo treinos intensivos, criação de coreografias, gestão de eventos, marketing e presença constante em festivais.
“Estamos envolvidos com a Kizomba há 17 anos. Decidimos conscientemente fazer dela um dos pilares das nossas vidas, a par da família, do trabalho, da saúde e do lar” – Łukasz e Karolina.
Quanto ao fenómeno global da Kizomba, Łukasz e Karolina acreditam que a sua popularidade não é passageira. “A música tornou-se mundialmente popular – essa é a chave do seu sucesso. A dança é atractiva, por vezes espectacular, e a Kizomba consolidou-se como uma das principais modalidades nas escolas de dança”, observam. A abertura turística de Angola foi, segundo o casal, um factor determinante. “Ao permitir o acesso directo à cultura, à dança e à música, os amantes da Kizomba puderam beber da fonte e levar a essência deste estilo para o mundo.”
Na Polónia, a Kizomba encontrou terreno fértil. “O povo polaco é naturalmente animado e já apreciava estilos como dança de salão, salsa, bachata e hip-hop, o que facilitou a sua aceitação”, afirmam, destacando ainda que “o sucesso da cena Kizomba na Polónia se deve à criação de um espírito de cooperação, em vez de competição, no meio artístico”.
Os desafios, contudo, persistem. Para o casal, a base da pirâmide está nos instrutores. “São eles que criam aulas regulares, eventos semanais e grupos coreográficos, estabelecendo ligações fortes com o estilo. É exactamente aí que sentimos que o sistema de base não está a funcionar plenamente”, defendem. Na mesma linha, consideram que os grandes festivais, embora atraiam dançarinos experientes, nem sempre conseguem captar novos públicos, o que limita o crescimento sustentável da comunidade.
Também abordam a ascensão de estilos como o UrbanKiz ou a Kizomba Fusion. Para Łukasz e Karolina, não se trata de uma ameaça, “desde que se saiba o que é, de facto, a Kizomba” e que se mantenha o respeito pelas suas raízes. No plano económico, reconhecem as limitações. “A Kizomba ainda não é um fenómeno de massa nem possui escala suficiente para garantir estabilidade financeira. É difícil viver apenas da dança, mas é, sem dúvida, uma fonte adicional de rendimento.”
Mais do que uma dança, a Kizomba é uma cultura. Por isso, o projecto “Vamula” faz questão de integrar nos seus festivais palestras sobre o quotidiano angolano, os costumes, a gíria e a música. “Este ano, teremos uma palestra dedicada à música”, adiantam, reforçando a importância da contextualização cultural.
Num mundo onde a igualdade de género continua a ser um desafio, Karolina oferece uma leitura menos óbvia. “Não me sinto particularmente pressionada por expectativas externas. O que mais me impressiona é a pressão sobre os homens, que precisam liderar a dança e lidar com a ideia, ainda muito enraizada, de que dançar não é algo masculino. Por isso, pode ser até mais difícil para os homens entrarem no mundo da dança do que para as mulheres.”
Ao falar dos melhores festivais de Kizomba do mundo, o casal admite tratar-se de uma escolha subjectiva, mas enumera alguns marcos: o Kizomba & Semba Champions Festival, realizado em Varsóvia de 7 a 10 de Novembro de 2025, com Campeonato Polaco de Kizomba e Semba e actuações de artistas como Karina Santos; o Angolan Dance Festival, em Abril, em Lisboa; e o Festival Mwangole, em Junho, em Paris. Referem ainda o Festival do Kwanza, em Praga, o Afro-Festival, em Málaga, e grandes eventos angolanos como o Kudissanga, em Dezembro, e o Angola Kizomba Festival, em Outubro.
De Angola para o mundo, a Kizomba continua a unir culturas, corações e histórias. O percurso do casal “Vamula”, vindo da Polónia, é prova de que esta dança é muito mais do que movimento: é identidade, pertença e uma forma de viver.
Alexandra de Brito: liderança feminina e construção de comunidade

Tal como Łukasz e Karolina levaram a essência da dança angolana para a Europa de Leste, outras figuras internacionais têm seguido percursos semelhantes, transformando paixão em comunidade. É o caso de Alexandra de Brito, de origem cabo-verdiana, nascida em Portugal a 5 de Janeiro de 1976, mas cuja vida foi profundamente moldada por Genebra, na Suíça – cidade que se tornou a sua segunda casa e palco de crescimento pessoal, profissional e artístico.
Formada como cabeleireira em 1993, Alexandra cedo percebeu que a sua verdadeira vocação residia na dança. Mesmo vivendo na Europa, nunca perdeu a ligação à sua cultura – aos costumes, à gastronomia, ao crioulo, à música e à dança. “A Kizomba sempre esteve presente nas festas, nos casamentos e nas ruas da minha infância. Mas o verdadeiro amor pela dança surgiu no meu primeiro festival de Kizomba, em Lisboa, quando percebi que, através dela, podia expressar emoções profundas e criar conexões genuínas com as pessoas”, recorda.
Para Alexandra, a dança tornou-se um espaço de equilíbrio num mundo acelerado. “Dançar é um momento para respirar e voltar a sentir. Para mim, a dança é uma terapia da alma: ajuda a curar o corpo e o coração.” Essa ligação emocional foi o ponto de partida para a criação de projectos que unem arte, comunidade e cultura.
Em 2015, fundou o Geneve Afro Kizomba Festival (GAF), cuja primeira edição teve lugar em Genebra. O evento ganhou rapidamente notoriedade, levando Alexandra a expandi-lo para Espanha, em cidades como Barcelona e Alicante, tornando-o mais acessível financeiramente e mais internacional. O GAF afirmou-se como uma referência no universo da Kizomba, reunindo professores, alunos e entusiastas num ambiente centrado na partilha e na descoberta cultural.
“Gostaria de ver um mundo da Kizomba mais unido, mais respeitoso e mais profissional. Que continue a crescer, mas sem perder a alma […]” – Alexandra de Brito.
O caminho não foi isento de obstáculos. “Os desafios foram enormes, mas nunca maiores do que os meus sonhos e a minha vontade de vencer. Este mundo ainda é muito machista. Não é fácil para uma mulher lutar e vencer, mas também não é impossível”, afirma. Para Alexandra, liderar implica provar competência, firmeza e visão, mas também trazer uma abordagem própria. “A força feminina acrescenta sensibilidade, empatia e organização.”
Sobre a evolução da dança, em particular do UrbanKiz, a sua visão é ponderada. “A dança evolui, como tudo na vida, mas uma evolução desorganizada é indesejável. Ainda assim, respeito. O importante é que cada estilo mantenha a sua identidade e o respeito pelas raízes. A diversidade enriquece a cena da Kizomba, desde que não se perca a essência.”
Alexandra não ignora a dimensão económica do sector. “É um mercado com altos e baixos. Exige muito investimento – logística, deslocações, artistas, som, alojamento, marketing – e o lucro nem sempre é garantido. Quanto aos professores, depende da reputação e da experiência; os valores podem variar entre 300 e 700 euros por evento.”
No que tem que ver com o futuro, a sua visão é clara e alinhada com a de outros protagonistas do meio. “Gostaria de ver um mundo da Kizomba mais unido, mais respeitoso e mais profissional. Que continue a crescer, mas sem perder a alma. Que valorize artistas, professores e, sobretudo, o público que faz tudo acontecer. Daqui a dez anos, espero que ainda possamos dançar com o mesmo amor e energia, porque a Kizomba é, antes de tudo, um sentimento.”
Actualmente, Alexandra lidera também o GAF Summer Festival e o projecto I AM KRIOLA Night, reforçando o papel da liderança feminina neste universo. “Quero mostrar a todas as mulheres que nós também podemos. Basta lutar e acreditar. Hoje, há cada vez mais mulheres inspiradoras à frente deste movimento, e isso é muito bonito de ver.”
Issa Buanga Puathy: a dança como ferramenta de conexão e inclusão

Nascido na República Democrática do Congo (Congo Kinshasa), no coração da África Central – região atravessada pela linha do Equador e que partilha fronteiras com nove países, entre eles Angola –, Issa Buanga Puathy carrega no seu percurso a marca da diversidade cultural africana. Em 2005, chegou à Suíça, país onde viria a consolidar um trajecto singular, cruzando formação académica, desenvolvimento pessoal e expressão artística.
Licenciado em Direito pela Universidade de Friburgo, Issa complementou, em 2013, o seu percurso académico com uma formação como instrutor de fitness, adquirindo competências transversais nas áreas da educação, mediação e acompanhamento psicossocial. Esta combinação de saberes viria a revelar-se determinante na forma como hoje entende e pratica a dança: como ferramenta de conexão humana, equilíbrio emocional e inclusão.
O encontro com a Kizomba aconteceu de forma orgânica, através de eventos culturais e de momentos de partilha. Desde o primeiro contacto, o ritmo falou-lhe profundamente. “Pela sua sensualidade, pela sua força emocional e pela forma como cria laços entre as pessoas”, afirma. Laços que reflectem a própria personalidade de Issa marcada pela alegria, pela disponibilidade e por uma energia contagiante que o mantém sempre rodeado de gente.
As aulas de dança tornaram-se, assim, um espaço privilegiado de expressão, partilha e equilíbrio interior. Hoje, a Kizomba faz parte integrante da sua vida, funcionando como uma fonte contínua de energia, prazer e realização pessoal. Para Issa, a sensualidade presente na Kizomba é uma riqueza cultural que deve ser valorizada com respeito e consciência.
“No papel de professor, procuro criar um ambiente acolhedor e profissional, onde cada pessoa se sinta segura para evoluir”, explica. “As aulas assumem uma dimensão quase terapêutica, tanto para os alunos como para mim próprio, promovendo a conexão comigo, com os outros e a libertação das tensões do quotidiano.”
Professor de dança, coach, educador e modelo, Issa desempenha múltiplos papéis que exigem adaptabilidade, escuta activa e uma gestão equilibrada da energia. Funções distintas, mas profundamente complementares, que se alimentam mutuamente e sustentam o seu compromisso com a arte e com o ser humano.
“Acredito que não existe uma idade fixa para abandonar o palco. Enquanto houver paixão, rigor e respeito, o professor pode continuar a transmitir o seu saber”, defende. Para Issa, mais do que um ponto de chegada, a transmissão é um processo contínuo, uma passagem de testemunho que acompanha o crescimento de novos talentos, mantendo-se activo, presente e relevante.
“Acredito que não existe uma idade fixa para abandonar o palco. Enquanto houver paixão, rigor e respeito, o professor pode continuar a transmitir o seu saber” – Issa Puathy.
Embora distinto da Kizomba, o Ndombolo ocupa também um lugar especial na sua visão das danças africanas. Originário da África Central, este estilo, segundo Issa, é essencial nos festivais, pela energia que aporta e pela complementaridade histórica que oferece. “Pode surpreender, mas enriquece o vasto universo das danças africanas”, sublinha.
Ndombolo, diversidade e diálogo entre culturas africanas
Nascido na República Democrática do Congo nos anos 1990, o Ndombolo é um género musical e de dança vibrante, que combina soukous, rumba congolesa e influências modernas. As letras abordam temas como amor, relações, casamento e quotidiano, enquanto a dança celebra a identidade congolesa através de movimentos intensos e sensuais. Artistas como Koffi Olomidé, General Defao e a banda Wenge Musica foram pioneiros na popularização do estilo, que, apesar de momentos de censura devido à ousadia dos movimentos, viu a sua notoriedade crescer exponencialmente.
Ainda assim, Issa é claro: para compreender verdadeiramente a essência do Semba e da Kizomba, é fundamental viajar até Angola e mergulhar nas suas raízes. Só assim, defende, é possível ensinar e dançar com autenticidade.
Desafios e perspectivas
“O desequilíbrio entre o número de festivais realizados na Europa e em África é uma realidade que importa corrigir”, alerta. Para Issa, é essencial reforçar as iniciativas no continente africano, valorizando os artistas locais e fortalecendo a ligação das diásporas às suas origens culturais.
No que respeita à remuneração, reconhece que os valores pagos a professores internacionais variam consoante os eventos, mas continuam, muitas vezes, aquém do investimento pessoal e profissional exigido. Para tornar o meio mais justo e sustentável, aponta três caminhos fundamentais: maior reconhecimento de percursos atípicos e trajectórias de vida inspiradoras; valorização plena das danças africanas, na sua diversidade e profundidade cultural; e criação de espaços verdadeiramente inclusivos, onde todos se sintam legítimos, respeitados e acolhidos.
Para o congolês, a dança é muito mais do que movimento: é uma linguagem que nasce do coração e se expressa através do corpo. Embora não viva exclusivamente da dança, dedica-se com paixão à partilha desta arte, muitas vezes através de actuações voluntárias ou colaborações criativas. O prazer de dançar e de criar ligação com os outros permanece no centro do seu percurso.
O ponto de partida para a criação de uma coreografia é quase sempre a música e a emoção que ela desperta. “O ritmo, as letras ou a energia de uma canção podem ser o que me inspira”, explica Issa. “Procuro uma música que fale tanto ao coração como ao corpo e que se adapte à sensibilidade do grupo.” Reconhece também a influência crescente das tendências digitais, como excertos e desafios partilhados nas redes sociais.
A inspiração nasce da observação, da intuição e das experiências pessoais, mas, acima de tudo, dos alunos – das suas energias, histórias e necessidades. A cultura é outro pilar essencial, sobretudo em danças de raízes africanas, como a Kizomba e o Ndombolo, que transportam identidade, ritmo e alma.
O processo criativo inicia-se com a improvisação, deixando o corpo reagir livremente à música. Segue-se a estruturação: identificar momentos-chave da canção, criar frases coreográficas que contem uma história e ajustar a complexidade ao público – crianças, adolescentes, adultos, iniciantes ou avançados. O objectivo é sempre tornar a dança acessível, expressiva e evolutiva.
As aulas são concebidas como espaços de aprendizagem, liberdade e partilha. Issa começa com aquecimento e exercícios de consciência corporal, avança para o trabalho técnico – postura, coordenação, musicalidade – e introduz depois a coreografia, passo a passo. O momento final é dedicado à expressão livre. “Com as crianças, trabalho muito através do jogo, da imaginação e da valorização individual”, explica. Já com os adultos, “foco-me mais na escuta de si e do outro. A dança, afinal, é uma forma de diálogo”.
Kristel Ju: tornar a Kizomba acessível e terapêutica

Nascida em Villeneuve-Saint-Georges, França, em Fevereiro de 1991, de origem nas Antilhas francesas, Kristel Ju sempre viveu em território francês. Formada como assistente de direcção, encontrou na dança a sua verdadeira vocação, construindo um percurso artístico marcado pela energia, dedicação e vontade de partilhar a cultura afrodescendente.
Detentora de formação em Djembel (afro fitness) e certificação em Tarraxo, Kristel move-se com naturalidade entre diferentes ritmos. O Zouk – originário das Antilhas –, assim como outros ritmos caribenhos com forte influência africana, ocupa um lugar central no seu universo artístico, criando uma simbiose entre culturas que se traduz em melodias dançantes e alegres.
O primeiro contacto com a dança surgiu cedo, aos seis anos, na associação Glyceria, dirigida pela sua tia. Mais tarde, integrou a associação ADECA, em Issy-les-Moulineaux, onde começou como assistente de um professor de Kizomba. Quando este deixou o cargo, Kristel assumiu a função de professora, ao lado do então parceiro Yonni.
O fascínio pela Kizomba nasceu de forma espontânea. Frequentadora do Metropolis, uma conhecida discoteca parisiense pelas suas noites afro-caribenhas, Kristel descobriu o estilo ao assistir a uma aula de Tony Pirata e Aurélie Galva. “Adorei!”, recorda. Embora esse primeiro contacto tenha ocorrido em 2011, só começou a dançar Kizomba de forma consistente em 2015.
Para Kristel, a Kizomba partilha laços profundos com outras danças de par, como a salsa e a bachata. “São danças que valorizam a partilha e a vivência da música com o parceiro. Todas têm raízes afrodescendentes e semelhanças nas atitudes e expressões corporais”, explica.
Ao longo dos anos, tem observado o crescimento contínuo da comunidade. “É curioso: vemos rostos familiares em cada festival, mas também muitas caras novas. A comunidade está claramente a expandir-se”, afirma, contrariando a visão de alguns colegas que consideram o crescimento estagnado.
Quanto à promoção dos estilos, Kristel acredita que o impacto não depende tanto da dimensão dos festivais, mas da visibilidade proporcionada pelas demonstrações finais e pelos meios de comunicação. Para ela, as aulas de dança vão muito além da aprendizagem técnica: são um espaço terapêutico. “Já ajudei muitas pessoas sem sequer me aperceber. Digo sempre que os problemas ficam fora da sala. Aqui, libertamo-nos e esquecemos tudo.”
Apesar do reconhecimento crescente, não ignora os preconceitos, sobretudo em relação às mulheres e mães que dançam. “Infelizmente, há quem não compreenda essa proximidade que existe na dança. Para nós, é apenas arte, expressão e partilha”, lamenta.
Entre os marcos da sua carreira, destaca-se a coorganização do Wakanda Festival, realizado em Fevereiro de 2020, no hotel Van der Valk, próximo do aeroporto Charles de Gaulle, em França. O evento reuniu cerca de mil participantes e tornou-se uma referência no circuito afro-dançante europeu.
Em constante formação, Kristel não segue uma estratégia rígida, mas mantém objectivos claros. “Quero tornar a Kizomba acessível a todos e tocar o coração das pessoas com esta música incrível e rica”, sublinha. As crianças ocupam também um lugar especial nos seus projectos. Embora a Kizomba não integre directamente as actividades infantis, Kristel aposta na dança afro como ferramenta de sensibilização. “É essencial despertar a juventude para a cultura afro e para o seu valor”, conclui.
Aos 41 anos, nascida em Lisboa, filha de pais santomenses e neta de ascendência cabindense e portuense, a professora e dançarina de Kizomba carrega no corpo e na alma uma herança viva das danças angolanas. Licenciada em Sociologia pela Universidade Nova de Lisboa e pós-graduada em Psicologia Comunitária e Proteção de Crianças e Jovens pelo ISCTE, dedica-se à dança há quase duas décadas, com formação em ballet tradicional Kilandukilo desde 2005. Ao longo deste percurso, tornou-se uma das vozes mais consistentes na reflexão sobre a Kizomba enquanto fenómeno cultural, identitário e global.
Quando questionada sobre o que faria de forma diferente se pudesse recomeçar, a resposta surge sem hesitações: “Tentaria ser menos dura comigo mesma. Não me preocuparia tanto em acertar sempre.” A maturidade trouxe-lhe a consciência de que cada fase tem o seu próprio ritmo. “Aprendi que cada tempo tem o seu tempo, e respeitar isso faz toda a diferença.” Reconhece, contudo, um erro estratégico: ter subestimado a importância da divulgação. “O meu trabalho cresceu, impactou e formou, mas nem sempre permiti que as pessoas vissem o quanto contribuí para as danças angolanas. Por não postar, por não divulgar, muita gente não teve acesso ao que fui construindo ao longo dos anos.” Hoje, o seu maior desejo é olhar para trás com serenidade, certa de que permaneceu fiel a si mesma, preservando a naturalidade e o amor pela dança.
Na sua leitura, os verdadeiros guardiões da cultura da Kizomba – professores e mestres pioneiros – cuidaram do património dentro das possibilidades e dos contextos em que actuaram. “A mundialização da Kizomba trouxe muitos desafios, e nem todos estavam preparados. Mas se não houvesse esse cuidado inicial, hoje não veríamos a bandeira de Angola erguida pelo mundo.” Ainda assim, defende que a preservação da essência exige responsabilidade colectiva. “Cuidar do património não é apenas ensinar passos. É preservar a história, respeitar os mestres, formar com consciência e comunicar com verdade. A dança é corpo, mas também é memória.”
Entre preservação e transformação
Com a expansão internacional, a Kizomba cruzou fronteiras, culturas e linguagens corporais, transformando-se num fenómeno global. A artista observa este processo com lucidez e distanciamento crítico. “É inevitável que, ao entrar em novos contextos socioculturais, a dança sofra mutações. Como qualquer prática viva, ela é permeável ao tempo e às relações humanas.” Recorda, a propósito, o momento em que assistiu ao surgimento do Urban Kiz. “No início, aquilo confrontava profundamente o que eu sabia. Era como se algo estivesse a mexer com as raízes daquilo que sempre vivi, não apenas como dançarina, mas como mulher africana.”
Com o tempo, passou a compreender que a questão não está em travar a transformação, mas em acompanhá-la com consciência. “A evolução não pode significar apagamento”, sublinha, lembrando que a Kizomba, o Semba e o Kilapanga são matrizes culturais e reservatórios de memória colectiva.
“Durante cerca de 15 anos tive uma agenda cheia, com festivais em várias cidades e públicos diversos. Um professor reconhecido pode ganhar entre 800 e 1.200 euros por fim de semana.” – Kristel Ju.
Questionada sobre o risco de a Kizomba se afastar das suas raízes, a resposta é firme: “Há uma diferença clara entre evoluir com consciência e desfigurar por negligência.” Sem mecanismos de preservação – como ensino qualificado, valorização dos mestres e diálogo contínuo com as comunidades de origem –, a dança corre o risco de perder a sua matriz africana. “Preservar não é congelar. É garantir que, mesmo ao reinventar-se, a Kizomba continue a carregar os valores e os significados que a tornaram uma expressão potente da cultura angolana.” Citando Frantz Fanon, acrescenta: “Cada geração deve descobrir a sua missão, cumpri-la ou traí-la. Para mim, preservar a Kizomba é parte dessa missão.”
Testemunha directa do nascimento de variantes como o Urban Kiz e o Afrofusion, hoje dominantes nos palcos internacionais, a dançarina admite que o impacto inicial foi desconfortável. “No início, incomodou-me profundamente – não apenas pela estética, mas pelo nome: ‘Kizomba Urbana’. O uso do nome para algo tão distante da essência gerava apropriação e apagamento simbólico.” O sucesso dessas vertentes, reconhece, está ligado à estética visual e à capacidade de adaptação aos grandes palcos. “São estilos impactantes, funcionam bem diante das câmaras e das multidões. Mas é preciso cuidado: a beleza não pode apagar a origem.”
Um dos paradoxos que mais a inquieta é o facto de existirem mais festivais de Kizomba fora de África do que no próprio continente. “A Kizomba nasceu em África, mas é fora que vemos os grandes palcos e os maiores investimentos.” Para a artista, a mundialização criou redes internacionais, mas nem sempre se traduziu em reconhecimento local. “A falha está na ausência de políticas culturais que reconheçam a dança como património. Só este ano vi um grande mestre ser finalmente reconhecido, depois de mais de trinta anos a propagar a cultura angolana pelo mundo. Esse atraso diz muito sobre o silêncio institucional.”
Ainda assim, sustenta que é possível viver exclusivamente da Kizomba, apontando o seu percurso é exemplo disso. “Durante cerca de 15 anos tive uma agenda cheia, com festivais em várias cidades e públicos diversos. Um professor reconhecido pode ganhar entre 800 e 1.200 euros por fim de semana.” O problema, alerta, surge quando o negócio se sobrepõe à missão cultural. “Ser professor não é apenas dançar bem. Exige responsabilidade pedagógica, conhecimento histórico e compromisso ético.” E acrescenta, citando Pierre Bourdieu: “A cultura é também um capital e deve ser gerido com consciência.”
Mulheres, corpo e poder simbólico na Kizomba
Ser mulher neste meio foi, e continua a ser, um desafio. “No início, raramente se via o nome de uma mulher nos cartazes. As parceiras apareciam apenas como ‘aquela que acompanha’.” Com o tempo, as mulheres conquistaram espaço, autonomia e voz. Foi nesse contexto que, em 2009, criou a aula hoje conhecida internacionalmente como Ginga. “Começou como um momento de partilha entre mulheres. Hoje é um espaço de escuta, movimento e empoderamento.” A Ginga, explica, permite às mulheres reconectarem-se com o próprio corpo e libertarem-se de camadas de censura e vergonha. “Quando a mulher se reencontra com o seu corpo através da dança, não está apenas a mover-se, está a reivindicar a sua narrativa.”
A artista combate ainda o estigma da sexualização da dança africana. “Os movimentos sensuais fazem parte da nossa expressão cultural. Para nós, é natural. Mas para culturas mais reservadas, isso foi desafiante.” O trabalho passou por mostrar que dançar não é expor-se, mas expressar-se. “E a expressão, quando nasce da raiz, é sempre digna.”
Hoje, enquanto mulher, artista e formadora, sente que o seu papel é inspirar outras mulheres a ocuparem o seu lugar — não como excepção, mas como referência. “As mais-valias são imensas. Posso criar com escuta, ensinar com raiz e comunicar com beleza.” Para ela, a Kizomba é corpo, memória e identidade. “Manter viva a sua alma é a missão de uma vida.”
De Angola para o mundo, a Kizomba permanece como corpo, memória e identidade viva. Mais do que passos ou estilos, é uma cultura em movimento, construída por pessoas, histórias e escolhas conscientes. Manter viva a sua alma é, para muitos dos seus protagonistas, uma missão que atravessa gerações.





