No seu escritório na Cidade da Praia Djo da Silva aguardava-nos serenamente, enquanto respondia a e-mails, atendia telefonemas e escrevinhava na agenda. Tem sempre muito que fazer. Vive entre a Praia, São Vicente, onde fixou residência depois da pandemia, e as muitas viagens que a função exige.
Na parede do escritório, omnipresente, uma enorme fotografia de Cesária Évora de sorriso largo. “Ela está sempre em todo o lado onde eu estou”, justifica.
A história de José da Silva é apaixonante e transforma-se numa verdadeira epopeia a partir do momento em que o seu destino se cruza com o da diva dos pés descalços. Mas já lá iremos.
Com apenas 20 dias de vida, José da Silva vai para o Senegal. O pai, comerciante da ilha Brava, decide levar a família para viver na costa africana, mas deixou-o, a ele e à mãe, 6 meses depois.
Mais tarde a mãe consegue trabalho em França, e é para lá que Djo da Silva vai com 13 anos. Durante todo esse tempo, não mais voltou a Cabo Verde. “A minha mãe nunca fez questão de vir a Cabo Verde, eu também cresci no meio francês, não ia a festas cabo-verdianas, não falava crioulo, não tinha vínculo praticamente nenhum”, afirma.
Uma realidade que mudou aos seus 17 para 18 anos quando recebe em Paris uma prima e o namorado, ambos chegados de Cabo Verde. “Começam a levar-me para as festas dos cabo-verdianos, depois descobrimos a Associação Cabo-verdiana, onde passei a jogar futebol e a tocar com outros músicos, e assim entrei no meio cabo-verdiano de Paris.”
Face a este “novo mundo” que se abria, Djo da Silva sente pela primeira vez o apelo de conhecer Cabo Verde. Foi assim que, com 19 anos e o dinheiro que ganhava a limpar escritórios em part-time, comprou a passagem aérea para a terra onde nasceu.
“Comecei a vender concertos e rapidamente percebi que a banda tinha tanta fama, que ganhávamos mais dinheiro a fazermos nós a produção. ”
Chegou ao Mindelo apenas com a morada da avó escrita no envelope de uma das muitas cartas através das quais mantinham contacto. O taxista deixou-o no meio de um bairro de casas de lata, entregue à sua sorte. “É aqui, diz ele, agora tens de procurar a barraca da tua avó”, afirmou. Djo passou 45 dias na paupérrima habitação, onde havia fotografias dele por toda a parte. “Todos conheciam o neto José que estava em França”, relembra.
De regresso a França, mais consciente da sua origem e raízes, Djo da Silva aprofunda o vínculo com a Associação Cabo-verdiana, tornando-se primeiro secretário, mais tarde presidente e incentivando em 1983 a criação de uma banda musical, os Sound of Cape. Ao mesmo tempo, começou a trabalhar como responsável de linha dos caminhos-de-ferro franceses.
Na banda, Djo da Silva tratava de tudo, dos ensaios, dos instrumentos, da produção. Tinha tempo, trabalhava por turnos. “Começámos a fazer festas, a ter sucesso, porque éramos muito conhecidos na comunidade, e eu desafiei-os a gravar um disco. Ninguém sabia como se fazia um disco, mas eu fui aprender.”
A banda tornou-se um sucesso na comunidade, presença assídua em festas e eventos, e entre 83 e 86 gravou três discos, mas acabou por falta de disponibilidade dos elementos.
Porém, a capacidade de gestão e organização de Djo da Silva saltou à vista do músico Manu Lima, do grupo Cabo Verde Show, que o convidou para ser manager da banda. “Foi um desafio, porque já era algo mais profissional. Comecei a vender concertos e rapidamente percebi que a banda tinha tanta fama, que ganhávamos mais dinheiro a fazermos nós a produção. E foi uma escola para mim.”
O ano em que tudo mudou
Tinha acabado de deixar os Cabo Verde Show, em 1987, quando conhece em Lisboa a pessoa que viria a mudar a sua vida para sempre. “Estava com a minha mulher de férias em Lisboa, e fomos ao restaurante do Bana, onde, por sorte, estava a Cesária Évora a cantar. Fiquei arrepiado, nunca tinha sentido aquilo. Eu tinha de falar com ela e entender quem era aquela senhora.” Impressionado por aquela voz e movido pela emoção do momento, Djo propõe a Cesária levá-la para Paris para fazer alguns espetáculos. Cesária estava de regresso a Cabo Verde, depois de uma tentativa falhada de singrar em Portugal, aceita a proposta apenas com uma exigência, levar o músico e seu grande amigo Luís Morais.
“E lá fomos nós, a Cesária dormia no quarto dos meus filhos, os meus filhos dormiam connosco, e o Luís Morais dormia no sofá da sala”, relembra.
No primeiro espetáculo em Paris, Djo da Silva esperava 100 pessoas, apareceram 800. Seguiram-se vários concertos para a comunidade cabo-verdiana em França, depois em Roterdão. “Tocávamos todos os fins de semana. Nos dias de semana, o Luís Morais ia ter com dois amigos cabo-verdianos, e a Cesária ia para um bar que havia perto da minha casa gastar dinheiro a jogar raspadinhas”, confidencia-nos entre gargalhadas.
“O meu banco expulsou-me”
Passaram assim os primeiros três meses até Djo propor a Cesária Évora a gravação do primeiro disco. Como “não sabe fazer coisas pequenas”, o produtor escolhe alguns dos melhores músicos cabo-verdianos daquele tempo para participar e selecciona um bom estúdio de gravação. As despesas vão aumentando, e Djo da Silva, um mero funcionário dos caminhos-de-ferro franceses, pede empréstimos à mãe, à sogra e aos amigos. Não foi suficiente, teve de ir a banca. “O meu banco expulsou-me como cliente quando pedi dinheiro para gravar um disco”, diz-nos. Não desanimou, atravessou a rua, foi a um banco concorrente, abriu uma conta para onde domiciliou o seu salário de funcionário público e conseguiu o empréstimo.
“Fizemos 3 mil discos e vendemos tudo num só mês. Devolvi o dinheiro a toda a gente, e assim me livrei das minhas dívidas.”
Foram precisos 5 anos para Cesária Évora se afirmar na cena internacional, o que aconteceu só ao terceiro disco quando Djo da Silva descobre a “fórmula mágica”, depois de ver a reacção do público francês à actuação de Cesária no conceituado Festival d’Angoulême. “Decidimos que o repertório seria metade eléctrico e metade acústico, e eu fui para o meio do público para perceber a reacção das pessoas. A parte eléctrica passou despercebida, mas quando passámos à parte acústica e tradicional fez-se silêncio, e começo a ouvir os comentários das pessoas e dos jornalistas a elogiar a voz da Cesária. Aí percebi que era esse o caminho. Eu até então estava a fazer discos para agradar à comunidade dos imigrantes, que só queria dançar, mas eu, se queria agradar ao mundo, tinha de fazer discos tradicionais”, e assim foi.
Depois deste episódio, Djo da Silva cria uma banda, a Mindel Band, que viria a acompanhar Cesária ao longo da sua carreira, volta a estúdio e grava um álbum, Mar Azul, totalmente acústico que viria a mudar tudo. “Vendeu 50 mil exemplares e mereceu as 1.as páginas do Libération e do Le Monde.”
Com este disco, consegue assinar um contrato de distribuição com a maior label francesa de música na época.
Cesária Évora era a nova sensação da música africana no mundo. Djo da Silva pede demissão dos caminhos-de-ferro franceses, abre um escritório (mais tarde um estúdio de gravação), emprega duas pessoas, e assim nasce a Lusáfrica, que na verdade já existia informalmente desde o 1.º disco de Cesária. “A Lusáfrica nasceu para a Cesária”, afirma.
Uma relação de total confiança
O resto da história é sobejamente conhecido. Cesária Évora torna-se numa estrela mundial, leva a morna e a coladeira de Cabo Verde aos 5 continentes, encanta o público de todo o mundo, enche as mais conceituadas salas de espetáculos. Assina um contrato de distribuição com a gigante BMG, que viria, depois, a ser comprada pela Sony.
“Todos queriam a Cesária”, recorda Djo, que nos confessa que teve propostas milionárias para vender a diva dos pés descalços, o que nunca aconteceu. “Os números começam a elevar-se de tal forma, que percebi que tinha de protegê-la. De repente, eram milhões que eram propostos. Felizmente, a Cesária era uma pessoa muito terra-a-terra, muito simples, mas também muito inteligente, e logo de início deu-me carta-branca para tratar de tudo.”
Era uma relação de confiança, de família, a que unia artista e produtor e se manteve até ao fim. “Eu nunca lhe escondi nenhuma proposta, ela sabia de tudo, eu explicava-lhe tudo, e ela tinha sempre a última palavra. A Cesária era muito mais do que uma artista com quem trabalhava, ela era parte da minha família, uma tia para os meus filhos”, recorda.
Djo e Cesária Évora gravaram 11 discos, venderam mais de 6 milhões de cópias, fizeram milhares de concertos em todos os continentes. “Qualquer sítio onde fôssemos era marcante. Ela começava a cantar, e vias a transformação nas pessoas. Era uma verdadeira diva, e ela sabia isso.”
Djo não esconde a saudade ao falar desta história que começou num restaurante de Lisboa em 1987 e se prolongou até ao triste dia da morte de Cesária, no Mindelo, em Dezembro de 2011. “Todos sabíamos que a decisão de não ficar em França, onde tinha todos os cuidados médicos, para ir viver para o Mindelo lhe podia custar a vida, mas assim ela quis, e tivemos de respeitar”, remata.
A aventura cubana
Até 1996, a Lusáfrica trabalha apenas com Cesária Évora, mas o sucesso alcançado com a diva faz chegar outros artistas. “Começo a ter uma pressão grande de propostas de produção, e aí começamos a produzir artistas da Costa do Marfim, Gabão, Senegal, Congo. Também gravamos muitos artistas das Antilhas. Nomes como Oliver N’Goma, com quem vendemos milhões de discos, Pierre Akendengué, o Patrick Saint-Éloi, dos Kassav, assim fomos. O catálogo foi crescendo.”
A estes nomes juntaram-se também vários artistas cabo-verdianos e lusófonos. Tito Paris, Lura, Bonga, Élida Almeida e muitos outros foram produzidos nos estúdios da Lusáfrica. Hoje o catálogo soma mais de 350 referências musicais.
“O Polo Montañez actualmente é o artista mais rentável da Lusáfrica, mais do que a Cesária Évora. A América Latina é enorme e cresce todos os anos. ”
No final dos anos 90, Djo da Silva vai a Cuba determinado em trabalhar com artistas cubanos. Já era um nome conceituado no universo da música do mundo, pelo que consegue inicialmente contratos com a Orquestra Aragón e o Sexteto Habanero. Abre um escritório em Cuba, com 12 colaboradores, e dá início, a partir de lá, a um período de intensa produção musical.
“E foi lá que aconteceu o segundo momento de sorte da minha vida, o primeiro foi a Cesária”, assim introduz Djo o episódio que nos conta a seguir. “Estava em Cuba num espaço cultural com um amigo, e oiço o Polo Montañez a tocar. Senti a mesma sensação que senti com a Cesária. Fui de imediato falar-lhe, apresentar-me e dizer-lhe que queria trabalhar com ele. Ele não acreditou, era um simples lenhador.”
Djo não desistiu, voltou uma semana depois com a equipa e fez uma proposta de gravação que Polo aceitou. “Vi logo em estúdio que ia ser um sucesso! Quando o disco saiu, foi uma explosão em Cuba, ele já nem podia sair à rua”, recorda.
O novo fenómeno da música cubana espalha-se por toda a América Latina, onde vende milhões de cópias. Polo viria a morrer em 2002 num acidente de viação, quando se preparava para a primeira digressão europeia. Mas o sucesso do cubano perdura até hoje.
“O Polo Montañez actualmente é o artista mais rentável da Lusáfrica, mais do que a Cesária Évora. A América Latina é enorme e cresce todos os anos. O Polo passou dos 500 mil streamings por semana a 1,2 milhões. A Cesária Évora está nos 700, 800 mil por semana”, diz o produtor. Djo da Silva manteve o escritório de Cuba 10 anos e gravou mais de 20 discos de música cubana.
Costa do Marfim
Por esta altura da entrevista já não temos dúvidas de que vida de José da Silva dava um filme, com muitos ritmos musicais e latitudes. E na segunda metade de 2000 o dono da Lusáfrica acrescenta-lhe mais um capítulo. O da Costa do Marfim, para onde vai assumir o comando do projecto Sony África.“Primeiro fiz parte de uma equipa de consultores da Universal para preparar a entrada da multinacional em África. Quando terminei, a Sony Music convidou-me para algo semelhante.”
Djo da Silva muda-se para Abidjan, constitui uma equipa, constrói um estúdio de gravação, um espaço de ensaios, e começa a trabalhar no catálogo africano da gigante do entretenimento.
“A estratégia era a música urbana. Eu defendi que, pelo menos, devíamos deixar uns 20% para a música tradicional. Mas o foco era música urbana e dentro da música urbana o rap. É um projecto a 10 anos, só depois disso dará dinheiro”, explica.
O produtor refere que tentou pôr nomes cabo-verdianos no catálogo da Sony África, mas sem sucesso. “Não por causa da Sony, mas, por causa dos artistas e das suas exigências. O nosso mercado é muito pequeno, e nós inventamos o nosso mundo a pensar que sabemos tudo e no final de contas não sabemos nada”, afirma.
José da Silva ficou 2 anos na Costa do Marfim, “o tempo de montar o projecto e cumprir a missão”.
“Não se ganha um público internacional sem sofrimento”
O empresário detinha desde 1996 uma empresa em Cabo Verde, também dedicada à produção e comercialização musical. Chegou a ter 7 lojas de discos espalhadas pelas ilhas, mas fechou a última na pandemia.
A Harmonia era o “braço” da Lusáfrica para Cabo Verde e através dela produzia e produz muitos jovens talentos. Depois da pandemia e cumprida a missão em Abidjan o produtor decide que iria finalmente cumprir um desejo antigo: viver em Cabo Verde.
Deixa a Lusáfrica entregue à filha Élodie Silva, desmonta o estúdio de gravação em Paris e remonta-o no Mindelo onde agora vive. É de lá que continua a produzir para o mundo, a descobrir artistas, a aumentar o seu catálogo e a gerir carreiras.