A empresa HBD Príncipe, pertencente ao bilionário sul-africano Mark Shuttleworth, anunciou a decisão de parar todos os investimentos e abandonar a ilha do Príncipe, em São Tomé e Príncipe, após crescentes acusações de práticas neocoloniais e tensões políticas locais. A decisão marca o ponto mais crítico desde o início do projecto, em 2010, considerado o maior investimento privado na história da região e responsável por transformar o Príncipe num destino turístico de referência internacional.
Numa carta dirigida ao Governo Regional, Shuttleworth afirmou que, como estrangeiro, reconhece a delicadeza entre “lutar pelo que se acredita” e “impor as suas crenças aos outros”.
“Acredito que o Príncipe poderia alcançar algo notável se fizesse escolhas diferentes de outras pequenas nações insulares, mas não estou disposto a lutar por isso. Não desejo ser um factor de discórdia na política ou na sociedade do Príncipe”, escreveu o empresário.
O multimilionário acrescentou que, perante o surgimento de fações políticas que interpretam a sua presença como um acto de má-fé ou de natureza neocolonial, a decisão mais respeitosa é retirar-se, “por respeito à autonomia do Príncipe”.
“A minha equipa e eu sentimos que actualmente somos vistos como benfeitores e sacos de pancada, conforme o que for mais conveniente no momento”, lamentou Shuttleworth.
Impacto económico e social
A saída da HBD poderá ter efeitos profundos na economia da ilha, onde a empresa emprega quase 80% da população activa e mantém projectos de hotelaria, conservação ambiental, agricultura sustentável e apoio social. Além de operar o luxuoso resort Sundy Praia, a empresa investiu em infra-estruturas públicas, formação profissional e reabilitação de estradas e escolas.
Nos últimos meses, contudo, a relação entre a empresa e parte da sociedade local deteriorou-se, sobretudo após a polémica decisão de cobrar taxas de acesso a uma das praias sob gestão da HBD. Apesar de a empresa alegar que a cobrança estava prevista nos contratos oficiais e se destinava à limpeza e manutenção do espaço, a medida foi fortemente criticada por sectores políticos e cidadãos, reacendendo o debate sobre propriedade, soberania e dependência económica na ilha.
Shuttleworth, que se tornou conhecido por ter sido o primeiro africano a viajar ao espaço em 2002, sublinhou que o seu investimento na ilha “nunca foi de natureza comercial”, mas sim um compromisso pessoal com o desenvolvimento sustentável e comunitário. Ainda assim, admitiu que não insistirá em permanecer num ambiente político hostil.
Autoridades regionais reagem
O presidente do Governo Regional do Príncipe, Filipe Nascimento, confirmou ter recebido a comunicação oficial do empresário na Segunda-feira, 13, e manifestou preocupação com a decisão, que descreveu como “uma perda grave e desnecessária”.
“Tudo estamos a fazer, em articulação com as autoridades nacionais, para inverter essa intenção. É uma parceria que tem dado frutos e não é benéfica para ninguém a saída da HBD”, afirmou o governante.
Nascimento responsabilizou “forças políticas e mediáticas” pela escalada de tensões, acusando-as de tentar obter “dividendos políticos” através de críticas infundadas ao investidor.
“São abordagens tristes e irresponsáveis. A HBD tem sido um parceiro credível, com vários investimentos e planos de continuidade”, declarou.
A HBD Príncipe (sigla para Here Be Dragons) chegou à ilha em 2010, com uma visão de turismo sustentável e de impacto comunitário, em parceria com o Governo Regional e o Estado santomense. O projecto foi amplamente saudado pela UNESCO, após a classificação de Príncipe como Reserva Mundial da Biosfera, em 2012, e serviu de modelo para iniciativas similares em pequenas economias insulares.
Nos últimos anos, porém, críticas sobre dependência excessiva do investimento externo, desequilíbrios na relação com o poder local e falta de transparência nos contratos públicos começaram a emergir, criando um ambiente de crescente desconfiança.
Um teste ao futuro do investimento estrangeiro
A decisão de Shuttleworth surge num momento em que São Tomé e Príncipe procura atrair capital privado para impulsionar o turismo, diversificar a economia e reduzir a dependência da ajuda internacional. Analistas alertam que a saída da HBD poderá enviar um sinal negativo aos investidores externos, num país que depende fortemente de parcerias estratégicas para o seu crescimento.
Mais do que uma saída empresarial, a retirada da HBD abre um debate sobre como pequenas economias insulares equilibram soberania política, investimento estrangeiro e desenvolvimento sustentável, um dilema que ecoa por todo o Atlântico lusófono.
*Com Lusa