Da Ilha de Santo Antão para o Mundo: ArquiteCtura que Cura, Conecta & Transforma

Têm em comum a insularidade, Eloisa Ramos, cabo-verdiana, nascida na montanhosa ilha de Santo Antão, e Moreno Castellano, italiano, natural da Sardenha. Além desta coincidência geográfica que os une, não menos importante é o facto de partilharem da mesma visão e dos mesmos conceitos de arquitectura. Juntos formam a dupla Ramos Castellano, uma das mais…
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Com um portefólio que abrange diversos continentes, mas com raízes firmes em Cabo Verde, a dupla de arquitectos Ramos Castellano destaca-se por projectos que celebram a cultura local, respeitam o meio ambiente e criam espaços para o bem-estar colectivo.
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Têm em comum a insularidade, Eloisa Ramos, cabo-verdiana, nascida na montanhosa ilha de Santo Antão, e Moreno Castellano, italiano, natural da Sardenha. Além desta coincidência geográfica que os une, não menos importante é o facto de partilharem da mesma visão e dos mesmos conceitos de arquitectura. Juntos formam a dupla Ramos Castellano, uma das mais bem-sucedidas sociedades de arquitectura de Cabo Verde.

Conheceram-se na Universidade de Coimbra e ali começaram as primeiras colaborações, sempre com uma preocupação: colocar o ser humano no centro. “Tentamos conceber espaços que ajudam as pessoas a encontrar paz. A paz alcança-se através da harmonia e da justiça”, diz-nos Eloisa Ramos.

Pela resposta percebemos que Eloisa e Moreno são muito mais do que simples arquitectos, a sua profunda humanidade e consciência social saltam à vista no que fazem e na postura que assumem, profissional e pessoalmente. Aliás, a decisão de instalar o estúdio na cidade do Mindelo, em 2008, faz parte desta filosofia. A dupla poderia ter-se estabelecido em qualquer grande capital do mundo, mas quis montar a base em Cabo Verde, na ilha de São Vicente, mesmo sabendo das limitações que teria de enfrentar.

“É estimulante trabalhar num ambiente onde há escassez, obriga a um incrível exercício de elasticidade e criatividade. Conseguir materializar algo de valor onde aparentemente parece impossível. Cabo Verde é um melting pot, um ambiente altamente estimulante”, justifica Eloisa. Castellano acrescenta: “Achei sempre estas ilhas um lugar na vanguarda. A miscigenação criou seres humanos com patrimónios genéticos riquíssimos e formas peculiares de encarar a vida.”

Foi no Mindelo que projectaram o primeiro trabalho em conjunto, um bloco de apartamentos. Hoje em dia, a assinatura da dupla de arquitectos pode ser encontrada em edifícios no Senegal, Mali, Brasil, Itália, Estados Unidos e, claro, vários em Cabo Verde. Cada projecto é uma nova experimentação, com as suas particularidades. “Cada projecto é único, moldado pelo cliente, pelo contexto e pelas necessidades específicas do lugar. Adoptamos uma abordagem multidisciplinar, porque acreditamos que a arquitectura deve responder a múltiplas dimensões, onde o ego individual cede espaço à colaboração e à integração”, diz-nos Eloisa.

Ainda assim, há conceitos dos quais não abdicam: sustentabilidade, humanização e uma harmonia entre estética e funcionalidade. “Acreditamos que a verdadeira beleza só existe quando há harmonia entre forma e função, e que um espaço funcional precisa de ser esteticamente equilibrado para promover o bem-estar”, explica Moreno Castellano.

Sustentabilidade e Inovação

Cabo Verde, com seus recursos naturais limitados, representa tanto um desafio quanto uma oportunidade para arquitectos comprometidos com práticas sustentáveis.

Ramos e Castellano priorizam o uso de materiais locais, minimizando o impacto ambiental e fortalecendo a economia regional. “O planeta não dispõe de recursos infinitos, por isso, tentamos ser leves no pisar a terra que nos dá nutrimento. Buscamos construir espaços e ambientes que alcancem um padrão de equilíbrio no ecossistema natural e no ecossistema social”, explica Moreno Castellano.

O Terra Lodge Hotel é um exemplo deste compromisso. O espaço, construído no Mindelo, recorreu a pedras extraídas do próprio terreno para criar um ambiente harmonioso e sustentável. Foi redesenhado a partir de um sobrado antigo que constitui a “casa-mãe”. À sua volta nasceram os blocos com os quartos, cada um com diferentes vistas para a cidade e para a baía, orientados para tirar partido da exposição solar e da ventilação natural. Nas fachadas, a dupla utilizou madeira e cal. Materiais recicláveis, placas fotovoltaicas na cobertura e sistema de reutilização de água enfatizam a abordagem ecológica do projecto.

“Tentamos conceber espaços que ajudam as pessoas a encontrar a paz.”

O Terra Lodge tornou-se numa referência da arquitectura local e está mencionado como um dos top 100 projectos na conceituada plataforma digital ArchDaily.

“Damos muita importância às tecnologias e tendências que emergem como verdadeiros catalisadores de transformação, tais como a construção sustentável e com materiais reciclados ou de baixo impacto ambiental. O concreto de carbono negativo e madeiras tecnológicas, que estão a redefinir a forma como projectamos edifícios mais responsáveis ecologicamente, as ferramentas como inteligência artificial e design paramétrico. Também a construção modular e impressão 3D e as simulações em realidade aumentada que permitem que as comunidades participem mais activamente na concepção dos seus espaços, promovendo projectos mais inclusivos e humanizados. Estas tendências apontam para uma arquitectura que não apenas responde aos desafios globais como também antecipa as necessidades das gerações futuras, transformando o modo como habitamos o mundo”, explica Eloisa Ramos.

Castellano soma às novas tecnologias de construção a neurociência, como uma área do conhecimento muito importante no trabalho de arquitectura actual. “É usada para entender como os espaços impactam o bem-estar. O estudo do cérebro humano e as suas interacções com o espaço construído é um campo que nos últimos anos está a impactar a arquitectura. Utilizamos esta ferramenta na concepção dos ambientes que projectamos”, afirma o italiano.

Uma parede de bidões coloridos

No coração da cidade do Mindelo, na sua praça principal, nasceu em 2022 um edifício que viria a marcar a dinâmica social e cultural de toda a cidade. A nova sede do Centro Nacional de Artesanato e Design alia tradição e cosmopolitismo e tornou-se num pólo de atracção de visitantes.

O projecto foi confiado aos arquitectos, que o estudaram detalhadamente com a preocupação de criar algo que fizesse parte da identidade mindelense, ao mesmo tempo que respeitasse a tradição, as artes e os saberes dos artesãos nacionais.

“Em Cabo Verde, os artesãos continuam a ter um papel preponderante, criando diariamente artefactos para as comunidades. É comum recorrer a um artesão para fazer móveis, portas ou cadeiras, esperar pacientemente pelo resultado e valorizar a habilidade por trás do objecto, construído com o esforço e o cuidado necessários. Por isso, cada elemento construtivo do CNAD reflecte esse tipo de artesanato; todo o edifício é uma grande obra de manufactura artesanal. A construção foi feita manualmente com o auxílio de ferramentas simples. O betão à vista foi reforçado por carpinteiros utilizando diferentes tipos de madeira. As estruturas de madeira foram produzidas em oficinas artesanais, com máquinas de corte e acabamento que deram suporte ao trabalho predominantemente humano”, explica a arquitecta.

O novo edifício contém espaços museológicos, galerias, loja de artesanato, centro de investigação e pesquisa, centro de formação e lugares de residência artística. Entra-se no espaço através da reconstruída casa colonial, que foi residência do senador Augusto Pereira Vera-Cruz e mais tarde sede da  histórica Rádio Barlavento, onde Cesária Évora fez as primeiras gravações.

Mas a fachada do novo edifício é provavelmente o que mais salta à vista de todos. Uma gigantesca parede revestida por mais de 2500 tampas de bidões reciclados, soldados e pintados manualmente, dando origem a uma fachada colorida e muito original. “A cultura da reciclagem é intrínseca à vida nestas ilhas. Bidões vazios nunca são desperdiçados, são transformados em chapas metálicas para cobrir casas, moldes para concreto ou utensílios como panelas e facas. Utilizá-los como material-base para a restauração do CNAD parecia perfeito”, diz-nos Eloisa.

A parede colorida tornou-se num dos mais fotografados lugares da cidade do Mindelo e factor de atracção de visitantes, turistas e nacionais, ao Centro Nacional de Artesanato e Design, que é hoje motivo de orgulho no vasto portefólio da dupla de arquitectos.

Mais humanização do espaço construído

“Ainda há muita construção e pouca arquitectura”, assim define Moreno Castellano o panorama da arquitectura em Cabo Verde. Algo que ambos querem ajudar a mudar através de construções pensadas, menos imediatas, com mais espaço para a reflexão. “Precisamos de projectos que valorizem a integração com o ambiente, o respeito pela cultura local e a aplicação de práticas sustentáveis”, diz-nos.

Uma arquitectura capaz de transformar não só os espaços, mas sobretudo comunidades. É disto que fala a dupla que tem agora em mãos o projecto de construção de um novo centro juvenil na periferia da cidade do Mindelo para receber jovens de famílias mais vulneráveis e funcionar como um pólo educativo e de formação. O espaço tem uma forte componente social e promete impactar a zona onde será construído, por isso Eloisa e Moreno estão profundamente envolvidos neste novo desafio, alinhado com o propósito do trabalho que têm vindo a desenvolver. “O nosso trabalho é conduzido pelo propósito de criar lugares onde as pessoas possam se curar, evoluir espiritualmente e viver em harmonia, influenciados pelos seres humanos e pela relação que têm com o seu envolvente.”

A dupla não é alheia ao enorme crescimento urbano de Cabo Verde e, no geral, das cidades africanas nos últimos anos. Tão-pouco ao exponencial aumento do turismo que ditou e dita a construção nos locais de maior fluxo.

Na verdade, foi assim que nasceu um ambicioso projecto imobiliário na ilha de Santo Antão. Ramos e Castellano começaram a trabalhá-lo para um grupo investidor alemão há cerca de 8 anos, com a missão de criar um assentamento orgânico que integrasse turismo, agricultura e sustentabilidade, numa lógica de aldeia comunitária onde funcionasse uma espécie de economia circular.

“O planeta não dispõe de recursos infinitos, por isso tentamos ser leves no pisar a terra que nos dá nutrimentos.”

O projecto, recém-inaugurado resultou num icónico espaço integrado na montanha e debruçado sobre o mar, na aldeia de Chã de Igreja. São 3 hectares de área cultivável, 14 quartos duplos, 4 vilas, um edifício de serviços, um restaurante com lounge, um edifício panorâmico, um campo fotovoltaico, 3 reservatórios de água para irrigação e um poço.

“A prioridade foi converter terras abandonadas em espaços agrícolas produtivos. Cerca de 20 trabalhadores locais construíram 5 km de terraços ao longo de 2 anos, transformando 5 hectares de terreno seco em 3 hectares de área irrigada e cultivável”, diz-nos Eloisa, visivelmente orgulhosa deste trabalho implementado na sua ilha natal. Ramos e Castellano passaram diferentes períodos do ano acampados nos terraços para identificar pontos protegidos dos ventos fortes, fora de áreas de queda de rochas e com vistas privilegiadas, por forma a definir a melhor orientação das construções.

“Todos os interiores e os móveis projectados foram artesanalmente produzidos por artesãos de oficinas locais, sempre com o objectivo de distribuir capital e conhecimento de forma local. Todo o processo participativo alterou, de certa forma, os sentimentos locais em relação aos visitantes, cuja presença passou a ser percebida como um elemento que traz energia ao ecossistema social, em oposição à lógica dos hotéis all inclusive, modelo económico dominante nas outras ilhas turísticas de Cabo Verde”.

Orientada para o bem-estar

Empenhados em marcar pela diferença, querem usar a experiência adquirida para ajudar a formar e moldar uma nova vaga de arquitectos, com maior consciência social e responsabilidade ambiental. “O crescimento urbano precisa de ser pensado para priorizar acessibilidade, habitação digna e espaços públicos de qualidade. A arquitectura em Cabo Verde será cada vez mais orientada para o bem-estar comunitário, promovendo inclusão e conectividade social”, diz-nos Moreno. Eloisa acrescenta: “Com os desafios das mudanças climáticas, soluções arquitectónicas que mitiguem os impactos do aumento do nível do mar e adaptem as infra-estruturas aos eventos extremos serão determinantes para o futuro das cidades e vilas do arquipélago.”

Moreno Castellano é um apaixonado por todas as artes e coloca-as ao serviço do seu trabalho. E Eloisa Ramos deixa as suas raízes falarem em tudo o que cria, e invoca a vivência em Santo Antão como a razão principal para a sua inclinação para as práticas ambientais sustentáveis.

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