Da pequena ilha Brava para o mundo

É nos menores frascos que vêm os melhores perfumes”, esta citação popular podia ser personificada por Nereida Lobo, empreendedora, empresária, filantropa e ex- -Miss África USA. Conquistas que alcançou a pulso, a partir dos sonhos de infância quando era apenas uma criança, filha de um pobre pescador da ilha Brava. Mas já iremos à infância,…
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Fundadora do Miss Cabo Verde Internacional, Nereida Lobo promove o empoderamento feminino e apoia crianças desfavorecidas através da sua iniciativa Little Crowns. Natural da ilha Brava, Cabo Verde, é empreededora, filantropa e antiga Miss África USA.
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É nos menores frascos que vêm os melhores perfumes”, esta citação popular podia ser personificada por Nereida Lobo, empreendedora, empresária, filantropa e ex- -Miss África USA.

Conquistas que alcançou a pulso, a partir dos sonhos de infância quando era apenas uma criança, filha de um pobre pescador da ilha Brava.

Mas já iremos à infância, naquela que é a mais pequena ilha do arquipélago de Cabo Verde.

Começando pelo presente, encontrámos Nereida no meio da produção do seu projecto mais querido, o Miss Cabo Verde Internacional, o evento do qual detém o franchising para Cabo Verde e que começou a organizar há dois anos. Esta será a segunda edição. E em dois anos, já houve importantes conquistas a assinalar. “Em 2022 conseguimos algo que nunca tinha sido feito para África. Em mais de 60 anos, foi a primeira vez que uma rainha negra ficou em segundo lugar”, Nereida refere-se à faixa de primeira-dama conquistada por Stephany Amado, a representante de Cabo Verde na Miss Internacional.

“O Miss Cabo Verde Internacional foi criado porque não vemos Cabo Verde representado a esses níveis elevados de concursos internacionais, como o Miss Universo, Miss Mundo, Miss Internacional e Miss Terra”, explica Nereida.

Para a segunda edição do Miss Cabo Verde Internacional, a empresária comanda uma equipa de mais de 50 pessoas que estão empenhadas na produção do evento e na preparação das candidatas, ao todo 25, em representação de todas as ilhas e da diáspora, que se reúnem na cidade da Praia para um bootcamp intensivo, porque, como diz, não é só a beleza que importa. “Durante este mês, trazemos profissionais que vão ensinar as participantes a andar na passarela. Temos coachs, psicólogos, professor de inglês, queremos trabalhar o desenvolvimento pessoal destas meninas e ensiná-las a abraçar as suas imperfeições. No final do mês, vemos claramente uma transformação. Elas tornam-se muito mais confiantes, empoderadas e aprendem a descobrir o verdadeiro poder que existe dentro delas”, explica Nereida.

A empresária fala de tudo isto com profundo conhecimento de causa, Nereida Lobo foi coroada Miss África USA em 2016.

“Sou uma mulher de negócios e uma construtora de relações que gosta de conectar pessoas.”

A vida da jovem bravense, naquela época emigrante nos Estados Unidos, cruzou-se com os concursos de beleza por acaso e sem que Nereida alguma vez tivesse essa ambição. Mas, ao ver o anúncio na Internet, entendeu-o como um sinal de que ali podia estar a porta de entrada para a concretização dos seus sonhos. “Primeiro eu pensei: O quê? Eu, uma rainha de beleza? O meu pai ficaria furioso. Sou adventista do sétimo dia, como ia dizer ao meu pai que ia competir de biquíni? Mas confiei na minha intuição e inscrevi-me. Algumas semanas depois, recebi um e-mail a dizer que tinha sido seleccionada.”

A partir daí, confessou-nos que estava determinada a vencer e que durante três meses se preparou profundamente para tal. O trabalho recompensa, e a menina da ilha Brava tornava-se na primeira cabo-verdiana coroada Miss África USA, um feito que lhe mudou a vida e permitiu começar o projecto social que tinha, mas para o qual lhe faltava apoio financeiro.

“A razão pela qual queria ganhar era porque queria usar essa plataforma de visibilidade para começar a Little Crowns, que foi uma ideia que me surgiu na faculdade para apoiar crianças desfavorecidas e dar-lhes acesso à educação”, explica.

Envergar o título de Miss África USA levou-a a muitos países, permitiu-lhe conhecer as pessoas certas e fazer do seu projecto beneficente um programa reconhecido em África ao nível do apoio à infância. “Uma coisa levou à outra, e as oportunidades começaram a surgir”, recorda a jovem, que em 2018 viu o seu nome constar da lista das 100 personalidades afrodescendentes mais influentes do ano, o MIPAD, iniciativa apoiada pela ONU.

“A minha mochila era um saco de plástico”

Nereida não nasceu em berço de ouro, bem longe disso. Os seus horizontes não iam além da microcomunidade piscatória de Lomba Tantum.

Aos 6 anos viu a mãe partir para os EUA, acontecimento que recorda como um dos mais dolorosos da sua vida. Nereida ficou com o pai, um humilde pescador, e a irmã mais nova, de quem era preciso cuidar.

“Aprendi a cozinhar arroz aos 6 anos. Punha uma cadeira para poder subir e alcançar o fogão, porque eu era a mais velha, tinha de ajudar o meu pai, que saía para pescar e procurar o nosso sustento. Nós éramos uma das famílias mais pobres da aldeia. Recordo que íamos para a escola descalças, e a nossa mochila era um saco de plástico. Nalgumas ocasiões, eu tinha de arrancar páginas do meu caderno para partilhar com a minha irmã e partir o lápis ao meio. Isso sempre me deixava chateada, mas eu nunca entendia porquê, até ficar mais velha e perceber que os meus pais não tinham condições”, confessa-nos, visivelmente emocionada, mas também para nos dar conta de como esta realidade moldou a pessoa em que se tornou hoje.

“Eu passei por isso e consigo pôr-me no lugar das crianças que ainda hoje não têm acesso à educação ou sequer o privilégio de ter uma mochila ou mesmo de ir à escola. É isso que está na base do Little Crowns.”

Apesar das origens pobres, Nereida nunca deixou de sonhar. O mar, de onde o pai tirava os rendimentos, o mesmo mar por onde viu a mãe partir, era o caminho para os seus sonhos. Um dia também ela sairia dali, por mar, para conquistar o mundo. E assim aconteceu, aos 13 anos a mãe conseguiu autorização para receber as filhas nos EUA, e Nereida estava finalmente a caminho da terra de todas as oportunidades.

A adaptação não foi fácil. De uma pequena aldeia com pouco mais de 200 habitantes para o enorme estado de Massachusetts, havia toda uma distância que ia muito além da geografia. Uma nova cultura, novos hábitos, em particular para uma menina criada sob os ensinamentos e protecção da Igreja Adventista do Sétimo Dia.

“Na Brava, na minha aldeia, tínhamos manchas nos dentes, porque a água lá tinha, e ainda tem, demasiado flúor. Então, na minha escola, muitas colegas gozavam comigo, por causa dessas manchas. Diziam que eu não lavava os dentes, sofri muito bullying por causa disso. Na Brava o meu pai dizia-me sempre que eu era a filha mais feliz porque estava sempre a sorrir, e nos EUA descobri que afinal o meu sorriso não era bonito, isto custou-me muito.” Nereida parou de sorrir por muito tempo, até um tratamento dentário lhe devolver o sorriso de criança, o mesmo sorriso com que conquistou o título de Miss África USA.

Da psicologia para os negócios e a filantropia

Nereida fez o liceu na cidade de New Bedford, no meio de uma das maiores comunidades cabo-verdianas na diáspora, mas a empresária sabia que para chegar aonde queria precisava de sair dali. Mal acabou o ensino secundário, comunicou à família que ia viver para Washington D.C. “Foi um choque. Eu não tinha nenhuma base de apoio lá, e a minha mãe era muito protectora, mas eu queria ir, e ninguém me impediu”, conta-nos.

Conseguiu uma bolsa para estudar Psicologia na Washington Adventist University. Diz-nos que não era propriamente o curso que a movia, mas, sim, a oportunidade de alargar os seus horizontes. “Foi difícil escolher um curso, especialmente quando os teus pais não têm a formação necessária para te orientar na escolha. Então, a Psicologia parecia uma forma de entender as pessoas, tentar compreender os outros. Os meus pais não tinham estudado muito e não sabiam nada sobre cursos e universidades, portanto, eu tive de ser a minha própria conselheira, a minha própria orientadora, a minha própria mentora”, justifica.

Ao terminar a licenciatura, Nereida sentia-se perdida, não se imaginava atrás de uma secretária a exercer a profissão. Começou a questionar-se sobre o futuro. “Comecei a sentir que a veia empreendedora estava a despertar em mim. Sempre tive ideias para negócios, por isso decidi fazer uma especialização em business e ver como isso me guiaria para descobrir a minha verdadeira paixão e propósito na vida”, relembra.

Foi nessa época que começou também a nascer o seu projecto beneficente Little Crowns. “Lembro-me de ter ido falar com um dos meus professores e dizer-lhe que estava perdida. Contei-lhe um pouco sobre a minha vida, e ele perguntou-me qual era a minha paixão. Foi aí que eu compartilhei algumas das dificuldades que enfrentei na infância, como a pobreza e as necessidades familiares, e me dei conta de que a minha paixão era mudar a vida de outras crianças.”

O Little Crowns tem a missão de fornecer materiais educativos a crianças desfavorecidas em toda a África. O projecto já fez doações e recuperou escolas devolutas na Etiópia, Gana e Cabo Verde, tendo beneficiado cerca de 2 mil crianças até ao momento.

“Continuo a ser essa mesma menina que ia para a escola descalça, que ia buscar água com o seu burro e o tentava guiar até chegarmos a casa.”

Além disso, Nereida tem trabalhado também na Nigéria e no Gana com a campanha “Um Brinquedo por um Sorriso”. “Vamos a lugares que realmente precisam. Levamos brinquedos e colocamos um sorriso no rosto das crianças. É uma realização que as palavras não conseguem explicar. Traz-nos muita alegria”, diz-nos.

A filantropa, que quer construir escolas em África, consegue concretizar estes projectos com o apoio de parceiros e mecenas com quem organiza eventos de angariação de fundos e reuniões de doadores. Nereida sabe que as portas começaram a abrir-se depois de vencer o título de Miss África USA. “Foi ali que comecei a ter voz, a ter acesso a todo o tipo de pessoas e a pôr a minha coroa ao serviço dos outros”, diz-nos.

A par dos projectos sociais, Nereida Lobo dirige uma empresa de consultoria em marketing e branding em Washington, D.C. que está em fase de expansão para o Brasil e também com alguns clientes em Cabo Verde.

“Recentemente, adicionei um novo serviço, que é o assistente virtual que ajuda os meus clientes nas tarefas do dia-a-dia, sobretudo nas áreas do marketing e organização. Tenho 12 funcionárias nas Filipinas a cuidar deste serviço virtual que ofereço a clientes de vários países.”

“Sou uma construtora de relações”

A Cabo Verde, Nereida vem uma a duas vezes por ano, mas diz que vai começar a visitar o país com mais frequência. Primeiro, porque o Miss Cabo Verde International é um projecto que quer consolidar cada vez mais para se tornar uma marca do país. Para isso, investiu pessoalmente na sua primeira edição, em 2022, cerca de 70 mil dólares.

Nesta segunda edição, a de 2024, a promotora reuniu mais alguns patrocinadores, mas, ainda assim, uma importante fatia do orçamento final, estimado em 150 mil dólares, partiu de si. “São eventos muito caros de produzir, muito mais em Cabo Verde. Além disso ainda há que pagar os fees de entrada nos concursos internacionais. Para enviar uma representante ao Miss Universo, são cerca de 15 mil dólares, mas o Miss International, com quem temos estado a trabalhar, são perto de 5 mil”, enumera.

Nereida insiste no evento, não pelo lado da competição de beldades, mas sobretudo porque acredita que esta pode ser uma ponte para muitas mulheres alcançarem os seus objectivos e um verdadeiro empoderamento, tal como aconteceu com ela a partir de 2016.

“Eu digo sempre às meninas que não se concentrem demasiado na coroa, pois mais importante é a jornada em si, as experiências e as memórias que vão criando nesta caminhada, a aprendizagem e a forma como o evento as transforma internamente e as fortalece.” Outra das razões para Nereida querer estar mais tempo em Cabo Verde são os investimentos no ramo imobiliário. A empresária já criou várias pontes com investidores africanos a quem está a facilitar a entrada nalguns negócios no país.

Para o futuro próximo está também a apresentação da sua marca de cosmética. Será no Gana, mas a marca deve migrar também para Cabo Verde em breve.

“Sou uma mulher de negócios e uma construtora de relações que gosta de conectar pessoas. Se conhecer alguém que tenha interesse em fazer negócios, sobretudo se conseguir trazer mais riqueza para a minha terra, tenho todo o gosto em intermediar e facilitar”, diz-nos.

Quando lhe perguntamos o que ainda resta da “menina pobre da ilha Brava”, Nereida respira fundo e diz: “Eu continuo a ser essa mesma menina que ia para a escola descalça, que ia buscar água com o seu burro e o tentava guiar até chegarmos a casa. São experiências pelas quais sou grata e que não esqueço, porque me fazem ser quem sou. São elas que me permitem colocar-me sempre no lugar do outro, com empatia e sentido de solidariedade. A menina da Brava com sonhos, ambições e projectos para o futuro continua a guiar o meu caminho, a fazer-me levar o nome da minha pequena ilha e do meu país mais além e a querer melhorar a vida de todas as outras meninas da Brava espalhadas pelo mundo.”

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