Os acordos de correspondência bancária celebrados entre instituições angolanas, o Deutsche Bank e o JPMorgan representam a primeira fractura visível numa década de isolamento financeiro.
Desde 2015, quando os principais bancos internacionais cortaram relações directas com Angola, motivados por falhas nos controlos de branqueamento de capitais e pela inclusão do país na lista de jurisdições de risco do GAFI, o sistema bancário nacional viu-se forçado a operar através de intermediários caros e lentos, com os custos de transacção em divisas a serem agravados.
A recuperação destes canais directos não é ainda um regresso pleno, mas marca uma inflexão no processo de reinserção internacional. O impacto imediato situa-se na gestão cambial. Com acesso directo a contas nostro em dólares e euros, os dois bancos angolanos podem agora executar pagamentos externos sem recorrer a cadeias de intermediação, com impacto na redução prazos e custos.
Para o Banco Nacional de Angola, traduz-se em maior controlo sobre os fluxos cambiais e menor pressão sobre as reservas internacionais, que nos últimos anos foram drenadas para cobrir ineficiências estruturais do sistema de pagamentos. A melhoria do canal formal tende também a diluir liquidez do mercado paralelo, que no caso angolano floresceu precisamente pela ausência de alternativas credíveis e de acesso fácil no sistema bancário.
Porém, a arquitectura desta reabertura não deixa de suscitar indagações, sendo que apenas duas instituições detêm correspondência com bancos de primeira linha global, situação que cria um mercado cambial estratificado. Os bancos sem acesso directo continuam dependentes de parceiros domésticos ou de intermediários regionais, operando com spreads mais altos e liquidez condicionada. Esta segmentação não é necessariamente transitória. Se os correspondentes internacionais mantiverem critérios restritivos, como é provável, dado o perfil conservador de gestão de risco pós-crise financeira global, o sistema pode cristalizar-se numa estrutura de mão dupla, onde poucos controlam o acesso ao dólar e os restantes permanecem em posição subordinada.
A dimensão geopolítica destes acordos merece leitura menos optimista. O Deutsche Bank não regressou a Luanda por ter descoberto virtudes regulatórias que ignorava há dez anos. Regressou porque a Alemanha intensificou relações comerciais com Angola e porque o governo alemão sinaliza interesse estratégico em rotas logísticas africanas, reforçada pela visita recente de Frank-Walter Steinmeier ao nosso país, incluindo aqui, também, a reestruturação da TAAG pela Lufthansa.
O Deutsche Bank não regressou a Luanda por ter descoberto virtudes regulatórias que ignorava há dez anos.
O JP Morgan segue lógica semelhante, ancorada nos interesses americanos no Corredor do Lobito e na competição com a influência chinesa na região, que é política externa americana. Isto significa que a correspondência bancária é instrumento de política externa tanto quanto operação financeira. E instrumentos de política externa podem ser retirados quando as prioridades mudam.
No plano macroeconómico, os efeitos deverão ser graduais. A estabilização do kwanza não depende apenas de melhores canais de pagamento, mas da consolidação fiscal, do controlo da inflação ( que continua alta apesar do abrandamento divulgado pelo INE) e da diversificação produtiva, variáveis que evoluem em ritmo próprio. As reservas internacionais podem beneficiar indirectamente se o sistema bancário reduzir a procura de dólares junto do banco central. Mas o verdadeiro teste será a sustentabilidade. Se a correspondência depender de renovações anuais condicionadas por avaliações de risco político, o país permanecerá refém de flutuações externas, sem autonomia efectiva.
Do ponto de vista das empresas, a situação continua incerta. Ter correspondentes bancários não garante que uma factura de importação seja paga em 48 horas, nem que um exportador receba divisas sem retenções administrativas. O problema em Angola não está exclusivamente na falta de canais externos, está também na burocracia interna que atrasa liberações cambiais, exige documentação excessiva e submete transacções rotineiras a aprovações que podem ser discricionárias.
A outra questão a ter em conta é que a fragilidade destes acordos reside na sua revogabilidade. Um banco correspondente pode suspender relações se detectar transacções suspeitas ou se a avaliação de risco país se deteriorar. Angola já experimentou isto em 2015, quando perdeu correspondentes quase simultaneamente. Não existe garantia contratual de permanência. As instituições internacionais operam com cláusulas de saída imediata. Um risco permanente.
O Banco Nacional de Angola enfrenta agora uma maka regulatória. Deve promover a extensão da correspondência bancária a um leque mais amplo de instituições, sem comprometer os padrões de compliance que justificaram a reabertura inicial.
Por outro lado, o Banco Nacional de Angola não pode limitar-se a celebrar o regresso dos correspondentes. Tem de preparar alternativas. Deve desenvolver mecanismos próprios de compensação regional, acordos bilaterais de pagamento com parceiros comerciais principais, e diversificação de moedas de reserva para reduzir dependência do dólar e do Euro. A Ásia e o Médio Oriente oferecem canais financeiros que não passam por Nova Iorque ou Frankfurt, e que podem ser menos sensíveis a pressões políticas ocidentais. Apostar tudo na reaproximação com bancos europeus e americanos é repetir o erro que levou à crise de 2015.
Um sistema financeiro saudável distribui riscos, por isso, a narrativa da soberania financeira, frequentemente citada neste contexto, deve ser reestruturada. Nenhuma economia integrada ao sistema global dispõe de autonomia absoluta em matéria financeira. O que está em causa é a qualidade da integração. Se Angola participa em condições previsíveis e recíprocas, ou se permanece numa posição marginal, sujeita a interrupções súbitas e acesso discricionário.





