A justiça moçambicana prepara-se para julgar o caso das alegadas agressões à escritora e Prémio Camões 2021, Paulina Chiziane, e a elementos da sua equipa, por membros da igreja Divina Esperança, em Julho de 2024. O episódio, que indignou a sociedade moçambicana, volta a colocar em debate o respeito pela liberdade cultural e o papel das instituições religiosas na convivência cívica.
A escritora confirmou, esta Quarta-feira, 15, que o processo seguirá para julgamento, após uma audiência judicial realizada na Terça-feira, 14, no Tribunal do Distrito de Marracuene, na província de Maputo.
“Produzimos algumas provas e o processo ainda vai prosseguir. Mas definitivamente o caso vai a tribunal”, afirmou Chiziane, acrescentando que, embora não exista ainda data marcada, “as coisas não estão a ficar bem para eles”.
O caso remonta a 28 de Julho de 2024, quando a autora de “Niketche” e “Balada de Amor ao Vento” foi alegadamente agredida por seguranças da igreja Divina Esperança, sob ordens do pastor local, enquanto registava imagens para um videoclipe nas imediações do templo, acompanhada por Eduardo Salmo e Vieira Mário. Além das agressões físicas, Paulina foi acusada de “bruxaria”, sob a alegação de transportar uma Timbila, instrumento musical tradicional dos chope, classificado pela UNESCO como Património Cultural Imaterial da Humanidade desde 2008.
“Agrediram-me a mim, agrediram o país. Agrediram pessoas que estão fisicamente lesadas. O Eduardo ainda tem sequelas até hoje”, denunciou a escritora, revelando emoção ao recordar o episódio. “Derrubaram o miúdo e pisaram-no no peito com uma bota pesada, como se mata uma barata. É muito complicado”, desabafou.
Mais do que uma agressão individual, o episódio expôs tensões latentes entre tradição e fundamentalismo religioso, num país onde a convivência entre fé, cultura e modernidade continua a exigir diálogo e maturidade institucional.
Paulina Chiziane lamenta ter sido forçada a recorrer à justiça. “Nunca imaginei colocar pessoas na barra da justiça”. Mas garante que o processo prossegue porque não houve retratação ou pedido de desculpas por parte dos acusados. “Continuam donos de Deus e da razão”, criticou.
Nascida em Manjacaze, Gaza, em 1955, Paulina Chiziane é considerada a primeira mulher moçambicana a publicar um romance e uma das vozes mais influentes da literatura africana contemporânea. A sua obra, profundamente enraizada na tradição oral e nas contradições do pós-independência, tem sido um espaço de afirmação da mulher africana e de valorização da identidade cultural de Moçambique.
O julgamento que se avizinha não é apenas jurídico — é simbólico. Representa a defesa da liberdade criativa, do respeito pela diversidade e da integridade de um património cultural que, como a Timbila, ressoa muito além das fronteiras moçambicanas.
*Com Lusa