As relações entre África e China continuam ainda muito centradas na cooperação económica e política. Entretanto, existe a intenção e está já a ser feita alguma coisa no sentido de esta ligação se estender também à arte, à literatura e à cultura no geral.
Recentemente, o actual embaixador da China em Angola, Zhang Bin, considerou que a relação económica e política entre os dois países está num nível alto, reconhecendo, no entanto, que o da cultural ainda está baixo, tendo manifestado o interesse em incrementar o intercâmbio no domínio da cultura.
E com este espírito, descobrimos em Luanda o cidadão chinês Juan Shang, que, encantado pela literatura lusófona, se dedica, desde 2011, a traduzir obras de renomados escritores africanos, e não só, do português para o mandarim.
De 40 anos de idade, Juan é jornalista, escritor e investigador de economia ligado ao Centro Chinês de Estudos dos Países de Língua Portuguesa (CCEPLP) da Universidade de Economia e Negócios Internacionais (UIBE). É igualmente professor emérito do Instituto Confúcio da Universidade Agostinho Neto (UAN) em Angola, membro da equipa que edita os blue books sobre o desenvolvimento das economias dos Estados-membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), vice-presidente do Kwenda Institute e ainda investigador do Centro de Estudos Africanos para Desenvolvimento e Inovação (CEADI), baseado em Cabo Verde.
Em Angola, dedica-se também à actividade empresarial, tendo fundado há 13 anos uma empresa de consultoria sobre investimento no país e como se conseguir obras de construção civil. A consultora tem como clientes fundamentalmente empresários e investidores chineses. Mas recentemente, em Janeiro deste ano, lançou-se também para o sector automóvel, onde é representante exclusivo de uma das marcas líderes da China. “Quando abri a empresa própria, passei a ter mais tempo para traduzir as obras literárias”, diz o investigador, que nasceu em Setembro de 1984, na província chinesa de Henan.
Numa conversa com a FORBES ÁFRICA LUSÓFONA, na sede da sua empresa, localizada em Luanda, em que não faltou o tradicional chá confeccionado à boa maneira chinesa, Juan Shang começou por contar que chegou a Angola, em 2009, pelas mãos do grupo estatal chinês de investimento CITIC, responsável pela construção da Centralidade do Kilamba, a primeira grande aposta imobiliária feita pelo governo angolano no pós-independência.
“Quando se começou a construir a Centralidade do Kilamba, em Luanda, a empresa CITIC contratou-me para trabalhar em Angola como tradutor”, lembra, dando nota de que, na altura [2009] havia na China apenas pouco menos de 2000 pessoas que falavam português, mas nos dias de hoje o número estará a roçar as 30 000.
Já na capital angolana, diz ter notado que não existia nenhum intercâmbio cultural entre a China e Angola, tendo, por isso, decidido então abraçar o desafio de levar a cultura angolana para o ‘gigante asiático’. Melhor forma não encontrou senão começando pela literatura. “Como investigador da Universidade de Negócios da China, dedico-me mais a investigar sobre a economia, a sociedade e o sector político de Angola, mas é mesmo a literatura que mais me fascina. Tenho uma grande paixão pela literatura lusófona”, afirma.
Aproveitando-se da flexibilidade do horário que tinha enquanto tradutor da CITIC, começou a dedicar-se a traduzir livros de escritores angolanos do português para mandarim.
“Desde pequeno que sempre gostei de literatura, e o interesse em investigar a literatura de Angola fez-me tomar a decisão de ficar no país. Quando consigo publicar um livro, alegro-me muito mais do que a ganhar milhões de kwanzas”, alega.
Tudo começou quando, em 2011, abandona a CITIC, dois anos depois, e passa a trabalhar para uma outra empresa chinesa. “Neste processo, conheci o escritor angolano Conceição Cristóvão, que até hoje é o meu guia da vida literária. Foi ele que me aconselhou a não me focar apenas em ganhar dinheiro, mas em apostar no intercâmbio cultural. Incentivado por ele e pelo seu irmão Cristóvão Neto, que também é escritor, comecei a fazer a tradução de obras literárias angolanas”, explica.
A primeira obra a ser-lhe sugerida e traduzida foram exactamente os poemas A Voz dos Passos Silenciosos, de Conceição Cristóvão, que levou cinco meses, “uma vez ser pequena”. Entretanto, o primeiro livro mesmo que traduziu, editou e publicou na China, em 2015, foi Uma Vida sem Tréguas – biografia de António Agostinho Neto, fundador da nação angolana e considerado o poeta maior do país, “que se tornou no primeiro livro sobre Angola publicado em território chinês”.
“Desde pequeno que sempre gostei de literatura, e o interesse em investigar a literatura de Angola fez-me tomar a decisão de ficar no país.”
De acordo com o tradutor, o livro sobre a vida do primeiro presidente da Angola independente tem despertado o interesse dos chineses, sobretudo daqueles que pretendem visitar o país, “por que traz um pouco da história de Angola”. Tanto é que, garante, a primeira edição está esgotada. “Hoje, no mercado chinês, só se consegue comprá-lo em segunda mão”, dá nota.
A caminhada de Shang na tradução de obras literárias de escritores lusófonos começou exactamente em 1 de Outubro de 2011, dia em que se assinala um feriado na China. Foi neste dia que decidiu lançar as mãos à obra. Até aqui são vários os livros traduzidos, entre poemas e contos, de renomados escritores angolanos, moçambicanos e portugueses.
Além dos já referidos, do leque de obras traduzidas para mandarim pelo jornalista e investigador chinês destacam-se Quem Me Dera Ser Onda, de Manuel Rui; Luanda, de Luandino Vieira; A Montanha da Água Lilás, de Pepetela; Uanga, de Óscar Ribas; Nga Muturi, de Alfredo Troni; Tesouro da Kianda, de Arnaldo Santos; Estórias do Musseque, de Jofre Rocha; A Morte do Velho Kipacaça, de Boaventura Cardoso; Undengue, A Dívida da Peixeira e O Pano Preto da Velha Mabunda, de Jacinto de Lemos. Constam ainda do conjunto o livro Nós Matámos o Cão-Tinhoso, do moçambicano Luís Bernardo Honwana, e Essa Dama Bate Bué!, primeiro romance da escritora luso-angolana Yara Monteiro, financiado pela Embaixada de Portugal na China.
Ao grupo de escritores lusófonos que já terão visto as suas obras serem traduzidas em mandarim juntam-se também nomes sonantes da literatura como Mia Couto e Maria Eugénia Neto. Entre todos esses, assume-se ser mais apreciador de Luandino Vieira. “É um grande homem, não só pelas obras que produz, mas também pelos seus pensamentos.”
Todas as obras são traduzidas por sua iniciativa e não de seus autores, que, garante, “não pagam nada” pela tradução. O que tem feito, diz, é solicitar a autorização destes para avançar. “Eu assumo os custos todos com a produção. E, à luz do contrato que fechamos, os autores também não recebem nada resultante da venda da primeira edição das suas obras na China, que basicamente serve para promovê-los naquele mercado”, explica. Mas, já no caso de eventualmente a procura pela obra justificar uma reedição, detalha, aí, sim, o autor já tem direito a beneficiar de 5% do valor da venda de cada exemplar.
“Deixe-me dizer primeiro que trabalho na tradução de literatura lusófona por paixão. Eu gosto de escritores angolanos, moçambicanos e portugueses. Mas traduzo principalmente obras de angolanos e moçambicanos”, realça, para mais adiante afirmar que tem encontrado muito mais dificuldades para traduzir livros de autores moçambicanos, e justifica: “É mais difícil porque eles misturam muito o português com as línguas locais, sendo que Moçambique tem mais de 62 dialectos.”
O investigador, que se considera um promotor do intercâmbio literário entre a China e os países lusófonos, avança que a estratégia para superar esta dificuldade tem passado por conhecer os autores das obras para junto deles buscar esclarecimentos sobre palavras que não perceba.
“Não posso dizer que sou o único, mas sou seguramente o principal tradutor chinês da literatura africana em língua portuguesa. Entretanto, neste momento não há nenhum outro chinês interessado em fazer tradução literária. É um trabalho muito pesado que precisa de conhecimentos profundos e requer mais tempo. Para se ter uma ideia, fazer a tradução de um conto ou de um romance leva cerca de um ano ou ano e meio, além do tempo que se tem de esperar até publicar a obra traduzida, que pode chegar a três ou quatro anos”, refere, apontando que, além dele, existe uma professora da Universidade de Línguas Estrangeiras de Pequim, que chegou a traduzir um dos poemas de Agostinho Neto. “Fazer tradução de poemas é mais complicado do que de contos”, aponta.
Juan Shang conta que o seu envolvimento com a tradução de obras literárias motivou-o a escrever também os seus próprios livros no género romance em mandarim, tendo já até ao momento publicado dois no seu país natal, intitulados Andando em Papel Branco com Cor Azul e África com Chaqueta de Algodão, além de uma obra de Contos Folclóricos Africanos.
Segundo faz saber, os Contos Folclóricos Africanos foram distribuídos em todas as escolas secundárias do país pelo governo chinês, o que lhe dá alento em continuar a promover a literatura africana na China. “O Ministério da Educação da China orientou todos os estudantes das escolas secundárias a estudarem os contos mundiais, incluindo os de África”, sublinha.
A obra, que comporta 100 contos em mais de 200 páginas, foi publicada em 2018 e despertou o interesse de cinco editoras chinesas que, em um ano, chegaram a vender 1 milhão de exemplares na China e em Taiwan.
“Para produzir um livro na China, nós temos de investir no mínimo 5000 dólares, mas cultura não se mede pelo valor monetário. Cultura é a alma de um povo, é o espírito. Literatura não tem limites, não tem fronteiras!”, conclui Shang.