Às seis e meia da manhã de um Julho quente e ventoso são poucos os que ainda dormem em Chã das Caldeiras. A pequena comunidade que cresceu dentro de uma grande cratera vulcânica mobiliza-se para uma das mais intensas épocas de trabalho de todo o ano, as vindimas.
Jovens e menos jovens são transportados até às vinhas, para iniciar mais uma jornada que começa cedo, porque é preciso terminar antes do sol escaldante do início da tarde.
Cada pessoa ganha aproximadamente 10 euros pelo dia de trabalho, não é muito, mas, para uma região marcada pelo desemprego e pela pobreza, os dias passados a vindimar fazem muita diferença no orçamento familiar.
Os produtores queixam-se de falta de mão-de-obra, “emigrou muita gente”, diz-nos Eduíno Lopes, proprietário de 30 hectares de terreno que nesta altura costumava ter aqui 40 pessoas a trabalhar e que neste ano não conseguiu nem metade. “Eu ofereço transporte, estadia durante esta temporada, refeições e o salário diário, mas, mesmo assim, nem mesmo nas localidades vizinhas consegui recrutar gente suficiente”, afirma o produtor.
Também David Gomes. que todos tratam por Neves, presidente da associação dos viticultores de Chã das Caldeiras, se queixa do mesmo. “Temos cada vez mais vinhas e cada vez menos gente para trabalhar nelas, sobretudo nesta época, o que faz as vindimas prolongarem-se mais do que o esperado.”
Neves é um dos principais rostos da produção vinícola da ilha do Fogo. Há quase duas décadas que dirige a maior cooperativa local, uma organização actualmente com 85 associados que entregam as uvas na adega de Chã, a maior da localidade.
O espaço é recente, foi construído depois da última erupção vulcânica de 2014 e tem capacidade para processar 6 toneladas de uva por dia. Ali é produzido o vinho Chã, a marca mais antiga da região, feita nas variedades branco, tinto, rosé e agora com uma experiência-piloto de espumante que deve chegar ao mercado ainda neste ano.
“O nosso vinho já ganhou o mercado, é um vinho de excelente qualidade”, diz-nos com um orgulho declarado, enquanto nos guia pela adega e nos mostra as técnicas e os equipamentos ali instalados. “Antigamente, no outro espaço, tínhamos prensas para 150 quilos de uva de cada vez, agora conseguimos prensar 10 mil. Dantes refrigerávamos os barris de vinho com toalhas de água fria, agora temos todo um sistema de refrigeração automatizado. Todos os parâmetros da fermentação são controlados e testados no nosso laboratório”, enumera Neves.
De facto, a nova adega trouxe melhorias significativas à produção. O espaço começou a funcionar pouco depois da erupção vulcânica, mas foi alvo de investimentos na ordem dos 5,5 milhões de euros que lhe permitem, hoje, produzir cerca de 100 mil litros de vinho por ano.
Uvas que nascem do vulcão
É pelas encostas de Chã das Caldeiras, ao redor do imponente vulcão, que as vinhas se estendem, desafiando as intempéries e a memória das erupções que devastaram esta localidade.
A última foi há 10 anos. Começou em Novembro de 2014 e durante dois meses a lava engoliu lentamente, e perante a impotência da população, tudo o que encontrou pelo caminho: terrenos, casas, escola, igreja, centro de saúde, até a sede do Parque Natural do Fogo, um edifício premiado que havia sido inaugurado poucos meses antes e resultou de um financiamento da cooperação alemã.
A adega cooperativa também não foi poupada, pela segunda vez o vulcão destruía a principal unidade de produção de vinho local e levava consigo grande parte da produção daquele ano, curiosamente uma das melhores colheitas de sempre, dizem os enólogos. “Era um grande vinho! Salvámos apenas alguns barris”, recorda Neves, que naquela época pensou em desistir desta aventura vinícola.
A Eduíno Lopes o vulcão deu tempo para salvar os 40 mil litros de vinho que já fermentavam nos seus barris, mas não lhe poupou as terras, os tanques de água nem a adega que criou para produzir o vinho Sodade. O ex-emigrante nos Estados Unidos da América reergueu-se, plantou mais videiras, fez novos investimentos e voltou à sua actividade agrícola.
“As primeiras videiras terão sido trazidas para a ilha do Fogo ainda no século XVII pelos portugueses.”
Mas, assim como as videiras voltam a brotar, a história do vinho do Fogo é a de uma comunidade que se levanta repetidamente para reconstruir o que a natureza lhes tirou. “Não temos nenhum ressentimento, o vulcão é nosso amigo, é o nosso melhor amigo”, diz-nos Eduíno sem hesitações.
A reconstrução de Chã das Caldeiras começou com o solo da aldeia ainda morno e sobretudo por iniciativa dos seus habitantes. Dizem que não sabem viver noutro lugar e que o vulcão lhes devolve sempre em dobro aquilo que lhes tira nas suas “fúrias”. Superstições à parte, é facto que hoje em dia há mais vinhas do que antes da última erupção, mais pessoas a dedicarem-se a esta actividade, mais marcas de vinho engarrafado e de qualidade reconhecida.

Vinho de carácter vulcânico e com personalidade
As primeiras videiras terão sido trazidas para a ilha do Fogo ainda no século XVII pelos portugueses. As amplitudes térmicas elevadas da região, o calor durante o dia, a humidade das noites e a altitude garantiram a sobrevivência das plantas e viabilizaram a única região vinícola de todo o país. “São vinhas que crescem no meio do solo vulcânico constituído por basalto e estão a ser cultivadas a partir dos 800 metros de altitude e até aos 2100 metros”, explica David Montrond, o enólogo do vinho Chã.
David diz-nos que num estudo recente foram identificadas 25 variedades de uva na região, mas há duas castas primordiais para a produção dos vinhos, o alfrocheiro, para o tinto, e o sabro branco, uma variedade semelhante ao moscatel, para o branco. “O vinho branco Chã é um vinho com presença de frutas cítricas e mineralidade, é um vinho para beber fresco. Já o tinto é um vinho intenso, de teor alcoólico em torno dos 14%, baixo grau de acidez e presença de frutos vermelhos”, explica o enólogo.
David começou a trabalhar na adega cooperativa em 2005 quando ainda andava no liceu. Um ano depois a sua curiosidade e o talento valeram-lhe uma formação em Itália durante 9 meses. Mais recentemente fez um curso técnico de enologia que resultou de uma parceria entre uma associação de desenvolvimento local e a Escola Técnica de Alba, em Itália.
Itália, um bom parceiro
Foi em 1998 que o vinho do Fogo começou a ser engarrafado através de um projecto da ONG italiana COSPE-CV. Durante mais de uma década a organização fomentou o cooperativismo e zelou pela melhoria das condições de produção, numa época em que as técnicas ainda eram muito rudimentares.
Vários produtores da ilha estiveram em Itália, onde aprenderam sobre a cultura vitivinícola, em regiões com as mesmas condições climatéricas e de cariz vulcânico da ilha do Fogo. A pouco e pouco, e com o apoio de vários parceiros, as técnicas e os equipamentos foram melhorando e com isso a qualidade do vinho.
Mais tarde, em 2009, também uma ONG italiana pertencente à congregação dos padres capuchinhos investiu num ambicioso projecto de criação de uma vinha de 25 hectares. As plantas vieram de Itália, mas desta vez foram plantadas, numa região de menor altitude, no concelho de São Filipe. Ao contrário das vinhas do vulcão, a vinha Maria Chaves é uma vinha irrigada por 6 quilómetros de sistemas de rega gota a gota. De Itália vieram técnicos e enólogos da região vinícola de Piemonte que puseram a funcionar a adega cooperativa de Monte Barro, a mais sofisticada da ilha, com 2 mil metros quadrados, muita tecnologia e capacidade para produzir, transformar e engarrafar, havendo matéria-prima, perto de um milhão de garrafas por ano.
A capacidade produtiva nunca chegou perto desta ambição, mas desde que o vinho Maria Chaves foi lançado, em 2013, que têm sido colocadas no mercado aproximadamente 80 mil garrafas anualmente, uma boa parte é exportada para Itália.
Desde 2020, à capacidade produtiva foi também acrescentada a vertente de formação, através de um curso técnico de dois anos em Enologia, ministrado na adega de Monte Barro por professores do Instituto Superior de Enologia e Viticultura de Alba, em Itália.
Vinho com rosto feminino
Nos últimos anos, a falta de água e a seca severa reduziram significativamente a produção na vinha Maria Chaves. A adega de Monte Barro tem funcionado com recurso às uvas adquiridas a alguns proprietários de Chã das Caldeiras. Uma delas é Maria de Jesus Lopes. Das suas vinhas, na enorme quinta do Monte Losna, saem mais de 35 toneladas de uva.
Maria tornou-se viticultora à força. O pai adquiriu a propriedade nos anos 70, era uma das mais férteis de toda a região, e lá plantou milhares de videiras que mandou vir de Portugal, para cumprir um sonho antigo. “O terreno chama-se Monte Losna porque era coberto de losnas. Mas o meu pai arrancou-as e no seu lugar punha videiras, 300 a 400 por dia”, recorda.
Tudo indicava que seria o seu marido na linha da sucessão para tomar as rédeas do Monte Losna, mas um trágico acidente de viação deixou-a viúva cedo demais. Não muitos anos depois, o pai também viria a falecer, e Maria de Jesus, técnica superior da FAO, com todos os irmãos emigrados nos EUA, viu-se a braços com uma herança muito desafiante. “Eu não sabia fazer nada disto. Foram as pessoas da comunidade de Chã das Caldeiras que me ensinaram, e depois fui às ilhas Canárias, a Tenerife, aprender com enólogos de lá como se fazia vinho. Não tive alternativa, este era o sonho do meu pai, e eu tinha de continuá-lo”, conta-nos, enquanto serve o lanche da manhã aos seus quase 40 funcionários.
Maria de Jesus faz do Monte Losna a sua casa durante três meses por altura das vindimas. Dorme numa pequena e tosca habitação ainda dos tempos do pai, construída numa das colinas da propriedade. Não há luz eléctrica, nem água canalizada, e a casa fica a uns bons 5 quilómetros da localidade, por um caminho de terra batida. “Não tenho medo de aqui ficar de noite, gosto do silêncio do vulcão”, confessa-nos.
Até ao ano passado, as uvas do Monte Losna davam origem ao vinho Maria Chaves, mas a colheita de 2023 e as que agora se seguem já vão ser comercializadas com uma marca própria, o vinho vai continuar a ser feito na mesma adega, mas no rótulo poderá ler-se Monte Losna, Maria diz que é uma sentida homenagem ao pai. “O meu pai dizia que o Monte Losna é um monte de ouro, porque é fértil e dá trabalho a muita gente. Eu estou a tentar manter esta riqueza, estou a continuar o sonho dele, certa de que, onde ele estiver, estará muito feliz.”
Medalhas de Ouro
Os investimentos feitos na melhoria das condições de produção dos vinhos do Fogo, aliados às condições naturais das vinhas da região, já lhe valeram alguns prémios e distinções internacionais.
Em 2018, os vinhos Santa Luzia Branco e Pico do Fogo Reserva, ambos da adega Maria Chaves, venceram duas medalhas de ouro no 26.º Concurso Internacional de Vinhos Extremos, em Itália.
Já em 2023, foi a vez de a colheita de Chã Branco 2021 vencer o ouro na mesma competição, tendo concorrido ao lado de 800 variedades de vinho de vários países.